Futebol, no Brasil, é como esses imigrantes que, de tal forma se afeiçoam ao país de adoção, a ponto de excederem em patriotismo os próprios nativos. E acabou mudando de nome. Quando eu era menina, os jornais já falavam no esporte, mas sob o seu nome inglês de foot-ball. Aos poucos os jornais foram adaptando não apenas o nome do esporte, mas a própria designação de sport, para esporte. Goal keeper passou a ser goleiro, back, beque; e traduziu-se, claro, esse goal, que também passou a ser simplesmente gol. Assim, através dos anos, aqueles que as folhas, de início, chamavam de "esporte bretão", é hoje o esporte mais querido, exercido, praticado, estudado e sobretudo preferido, em todo o território nacional.

Ainda há poucos dias vi, numa foto de jornal, índios amazônicos nus, apenas com um cipó na cintura, jogando uma perfeita partida de futebol. Tinha até apito, instrumento que, tratando-se de índios, deve ser essencial. Em qualquer lugarejo perdido, se três ou quatro garotos se juntam, improvisam uma bola e se põem a chutar. Aliás, dizem é que desses meninos pobres de interior ou de subúrbio, que nascem os melhores craques. Eles não têm as obrigações escolares rígidas dos meninos classe-média, nem os pais, aspirações burguesas para os seus rapazes. Todos os nossos grandes craques se formaram assim, nas peladinhas de terreiro.

Mas houve um tempo em que as coisas eram muito diferentes. Quando o esporte apareceu aqui foi pela mão dos grã-finos (então chamados de "elite"). Lembro-me de uma cançoneta (os mais velhos devem recordar o gênero "cançoneta", uma cantiga curta, celebrando ou referente a qualquer tema especial, infalível nos programas de festas escolares ou em representações de amadores, onde sempre aparecia um jovem cantando a sua cançoneta). Pois quero lembrar uma cançoneta por nome Foot-ball que diz assim: "Este esporte está na moda/ é de gosto internacional, os rapazes da alta-roda/ não conhecem outro igual"... Isso mesmo, os rapazes da alta-roda que o trouxeram da Inglaterra. Quando começou aqui, também só os grã-finos o praticavam. Um filho do escritor e acadêmico Coelho Neto, por nome Emanuel e apelido de Mano, era jogador, e parece que foi morto em consequência de uma bolada no peito; o pai até escreveu um livro intitulado Mano dedicado ao filho, onde chorava a perda do rapaz e, creio, lhe cantava os méritos esportivos.

E, depressa, dos campos nos jardins dos ricos, o jogo foi se espalhando pelos fundos de quintal, pelos terreiros suburbanos. E, hoje, creio que em nenhum outro lugar do mundo o futebol é tão amado, tão assumido, tão brasileiro quanto o é no Brasil. Por isso é que a perda do "penta" (que já nos adoçava a boca, como conquista garantida) doeu tanto, foi quase um luto nacional. Vi senhoras idosas chorando, velhos burocratas falando tão agravados quanto se tivessem sofrido um golpe pessoal. Aliás, tudo quanto é brasileiro, da criança ao idoso, lamenta e chora a "usurpação" da Copa, feita pela França.

E vá dizer a verdade, que a França mereceu, que ela jogou melhor, arrebatando o nosso "penta"! Neste momento de ira, "La belle France" é o grande vilão. Mas que é que se há de fazer? Paixão é isso. E quando a gente sugere que de quatro em quatro anos tem Copa, quem sabe no ano 2002 a gente ganha...? Eles nos olham com desprezo e chegam a nos apodar de traidores.

A sorte é que, ao início da nova temporada, as lágrimas se enxugam, as esperanças renascem. É o eterno ciclo da vida. Futebol é como a vida mesmo, se repete e se renova. Quem foi vencedor hoje pode estar entre os últimos, ano que vem. Pelo menos esta é a nossa esperança.

O mal pior é se perderem as coroas e as glórias que pareciam propriedades nossas. Imaginem se eles descobrem um novo rei, destronam Pelé? Falei "destronar" de propósito, pois que Pelé é realmente um príncipe, não só pelas suas qualidades de atleta, mas pelo seu comportamento social, pela dignidade que levou ao seu lugar de "primeiro jogador do mundo", e pela gentil naturalidade com que exerce essa suserania. Todo o mundo não viu? Durante esses jogos da Copa 98, quando havia uma dúvida, quando se discutia uma jogada duvidosa, a quem o árbitro, ou os árbitros pediam a palavra decisiva? Claro que a Pelé, sempre oculto e sempre presente, porque Pelé não se exibe. Mas está sempre ali; ainda no último domingo, numa hora crítica, o árbitro exclamou: "Vamos perguntar ao Pelé!" E como que abriu uma cortina, tirou de lá o Rei, que tranquilo, quase sorridente, como se pedisse desculpas por ser tão importante, deu a sua opinião (frisando o termo "opinião"), a qual, naturalmente, foi a sentença adotada.

Pelé não joga mais, aposentou-se. Uma das decorrências lamentáveis da sua real posição: rei não disputa, rei que se preza não briga, não tem preferências, tem que ser impecavelmente imparcial. Tal como faz Pelé. É como ficará fazendo, até ficar velhinho. Pois que Pelé, como todo rei de boa cepa, jamais perde a majestade.

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