Prezado Luís,

V. me desculpará não escrever seu nome todo, nem dar o nome do grande banco desta praça cujo cadastro acaba de se incendiar. Nessa coisa de bancos é preciso ter muito cuidado: banco é ao mesmo tempo um monstro todo poderoso e uma virgem extremamente delicada, cuja virtude já se sente melindrada só pelo fato de alguém admitir que ela possa vir a sê-lo.

O fato é que o incêndio despertou grande emoção nos baixos círculos financeiros desta praça, a que eu pertenço. Um amigo manifestou, de olhos brilhantes, a esperança de que seu “papagaio” tivesse se queimado: outro mostrou-se triste por ter pago há poucos dias uma letra; e um terceiro, que ali tem suas economias, perguntou com algum susto: “será que queimaram o meu dinheirinho”?

Porque banco é aço, banco é ouro, banco é também confiança, mas banco é principalmente papel. Afonso Arinos contou-me que veio certa vez à sua casa, aqui no Rio, um capiau do fundo das Minas Gerais, a quem ele devia pagar uma certa importância. O velho roceiro apareceu à noite, depois do jantar; e como não tivesse dinheiro em casa, Afonso disse que ia encher um cheque para ele. “Não senhor, eu não aceito papel do senhor não. Ah, isso não moço. Eu sei quem o senhor é, eu conheci seu falecido pai, o senhor não vai pensar que eu vou aceitar um documento do senhor. Sua palavra para mim vale muito mais do que qualquer papel escrito”.

Afonso teve trabalho de explicar ao homem o que era um cheque. E no dia seguinte, depois de receber seu dinheiro num banco, o velho contou maravilhado a um amigo: “mas o dr. Afonso é um homem acreditado mesmo. Cheguei lá com aquele papel, disse que ele tinha mandado, o homem nem perguntou quem eu era, foi logo me dando o dinheiro”.

Esse bem-aventurado, Luís, não sabia o que era um banco ― essa formosa instituição que, segundo uma definição antiga, “empresta dinheiro a toda pessoa capaz de provar que não está precisando dele”. Há, é certo, banqueiros diferentes; sem entrar (Deus me livre) no mérito da questão, nesse caso do inquérito feito no Banco do Brasil, devo dizer que simpatizei com a declaração do sr. Marino Machado, acusado de fazer empréstimos sem garantias reais: “sempre preferi emprestar ao pobre que paga do que ao rico que não paga nunca”.

Sei que v. é de mesma teoria, e defende a tese de que o inocente “papagaio” jamais deu prejuízo a nenhum banco, e ajudou a construir a fortuna de muitos, quem dá prejuízo ao banco é o rico especulador que faz negócios sobre mercadorias: quando há alta, ele paga, pois enriqueceu com o dinheiro do banco; se a coisa dá para trás, ele entrega a mercadoria desvalorizada, e o banco que se dane. Caso que acontece de preferência, é claro, com bancos oficiais, visto que o banqueiro sempre é mais liberal quando o dinheiro é, afinal de contas, do povo.

Mas eu queria lhe contar era um sonho que esta noite sonhei. Que todos os cadastros de todos os bancos tinham pegado fogo; mais ainda, toda a papelada, inclusive os títulos, tudo, menos o dinheiro. E também todos os fichários da polícia, todos os processos da Justiça, todas as coleções dos jornais, os arquivos particulares. O que aconteceria, Luís? Ficaríamos sem defesa contra os malandros e os criminosos, os embusteiros e os assassinos, os anarquistas e os calhordas ― ou seria o momento de fazer um apelo aos cidadãos em geral, sem excluir nenhum, dizer a eles que não havia mais nenhum papel escrito que alguém pudesse mostrar contra ninguém, e que era possível contar apenas com a palavra e a consciência de cada um, e que havia sido deliberado acreditar nessa palavra e nessa consciência? Você acha, Luís, que o mundo viria abaixo?

A ideia é engraçada, e parece que não tem nenhum sentido; mas não me ocorre outra esta manhã para fazer uma crônica; fique esta mesmo, e só o que lhe acrescento é um abraço apertado do sempre seu amigo e admirador

Rubem Braga

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