Mudança de lua — e de vento. Domingo já é lua cheia: sábado amanheceu torturado nas garras do noroeste. Tudo está indicando que deves proceder com a maior circunspecção. O melhor de resto, é não proceder. Não fazer nada: não suspirar, não sair, não receber, não telefonar, nem sequer consultar o horóscopo: ele poderia te influenciar.

Chega a cadeira mais para junto da mesa: apoia os cotovelos na mesa. Olha o teclado de tua máquina. Ali estão todas as letras e sinais. Todas as palavras: as que te lançam na cólera e na humilhação; as que te fazem marchar distraído sobre as águas do mar de manhã e ainda as que te afogam na última torpe lama do brejo distante e escuro, agarrado a um cão morto.

Estão todas aí, as palavras. Não as tema. Vê como são feitas: são feitas de letras. Basta bater uma tecla depois de outra tecla, e depois ainda outra, e mais alguma; há os espaços, o ponto de exclamação, o de interrogação. Há tudo o que é suficiente — e, seja o que for que qualquer pessoa pudesse te dizer, ou tenha dito, a palavra mais pura ou a frase mais mesquinha, tudo é uma simples combinação dessas letras brancas nesses círculos negros.

Experimenta bater as primeiras teclas de cada degrau. Lê: 2 qaz. Que quer dizer isso? Um número, uma consoante, a primeira vogal, a última letra. Isso não quer dizer nada.

Para escrever alguma coisa que queira dizer alguma coisa é necessário que escolhas a ordem de bater as teclas. Responde-me a esta pergunta: vale a pena? Hoje venta noroeste, amanhã é lua cheia. Depois virão outras luas e outros ventos, mas isso também e fútil. Pois um dia as luas poderão girar no céu e os ventos rodar na terra com meiguice ou fúria, isso não te importará. Estarás morto: e então não apenas tudo o que vier não importará como também tudo o que foi. Mesmo que se coloquem dezenas de milhares de pessoas, a perder de vista, dispostas em filas de metas, batendo milhões de letras em suas máquinas e escrevendo interminavelmente coisas contra ou a favor de ti: e ainda fileiras imensas de milhões de bocas de homem e de mulher falando, gritando ou murmurando as coisas mais doces e as mais cruéis, nada te importará.

Porque então te afligires agora? Que o vento noroeste arraste pelo asfalto todas as folhas secas, e depois venham as chuvas frias do sul e depois no céu limpo suba, imensa, a lua — não penses que isso tenha nada a ver contigo. No existes. Nada tem nada a ver contigo. 

rubem-braga
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