Periódico
Correio da Manhã

Publicada nos livros Morro do Isolamento,  Brasiliense, 1944, e 200 Crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga, Record, 1977, com o título "Nazinha".

No meio da noite comum do jornal um rapaz da redação perguntou-me — 15 anos — é menina ou senhorita?

Estava redigindo uma nota social e me propunha esse problema simples.

— Senhorita.

Ele ficou meio em dúvida e eu argumentei:

— Põe senhorita. Mocinha assim de 15 anos fica toda contente quando o jornal chama de senhorita... 

Mas ele explicou:

Essa, coitada, não vai ficar contente.... É um falecimento...

E pôs “senhorita”. — Continuou a noite comum de jornal. Nem sei explicar porque pensei nisso no meu caminho de sempre depois do trabalho, na rua vazia, de madrugada. Menina, ou senhorita? Senti de repente uma pena gratuita daquela mocinha que morrera. Nem me dera o trabalho de perguntar o seu nome. Entretanto ali estava comovido.... Oh! Senhor, o Diabo carregue as meninas e senhoritas, e que elas morram aos 15 anos, se julgarem conveniente! Pensei vagamente assim, mas a lembrança daquele diálogo perdido na rotina do serviço da redação insistia em me comover. Senti simpatia pelo meu companheiro de trabalho por causa de sua expressão:

— Essa coitada...

Bom sujeito, o Luiz. E fiquei imaginando que no dia seguinte poderia ler no jornal o nome da mocinha e de seus pais. E que talvez um dia, por acaso, eu conhecesse seus pais. Ele seria um senhor de uns 45 anos, moreno, bigodes malcuidados, a cara magra, os cabelos grisalhos. Ela seria uma senhora de 41, talvez de 38 anos, vagamente loura, os olhos parados, a cara triste, talvez um pouco gorda, de luto, muito religiosa, meio espírita depois da morte da filha. E então eu lhes contaria que me lembrava dessa morte e contaria a conversa da redação — mentindo talvez um pouco, inventando talvez uma conversa mais comovida para ser delicado. E ele chamaria a outra irmã, uma garota de seis ou sete anos, os olhos claro, lhe diria que fosse lá dentro buscar os retratos de Terezinha — poderia ser esse o nome da filha morta. E viriam dois retratos: um aos 13 anos, na janela da casa, rindo: outro aos nove anos, com a irmãzinha ao colo muito séria. E então a mãe diria que só tinha aqueles dois retratos — que pena! — e que gostava mais daquele dos nove anos:

— Não é Alfredo? Está mais com o jeitinho dela...

O sr. Alfredo concordaria mudamente e eu me sentiria inútil, sem saber o que dizer, e iria embora, e talvez depois que eu saísse, a mulher dissesse ao marido:

— Parece ser boa pessoa. 

E isso não teria importância nenhuma, nem me faria melhor nem pior do que sou. E nada disso acontecerá. Mas pensei em tudo isso andando na rua deserta e subindo as escadas para o meu quarto. E hoje, depois de tanto tempo, senti vontade de dizer isso sem nenhuma esperança de que o sr. Alfredo me leia.

Vai ver até que a mocinha era órfã de pai. Vai ver que a mocinha era doente, talvez aleijada de nascença, e que sua morte foi no dizer de sua própria mãe, “um descanso, coitada, para ela e para os outros”. Oh, o Diabo carregue as meninas e senhoritas, e que elas morram, morram às dúzias, às grosas, aos milhões! Morram toda as pálidas Terezinhas, morram, morram e não me amolem, pelo amor de Deus! 

Terezinha.... Porque inventei para a moça esse nome? Agora eu a vejo nitidamente e, não sei porque a imagino uns 23 dias antes de morrer, magrinha, os olhos claros, os cabelos castanhos claros, vestida de preto como se estivesse de luto antecipado por si mesma. Seus lábios são pálidos e os dentes de cima um pouco salientes deixam a boca semiaberta, e ela tem um ar tímido dentro de seu vestido preto, com meias de seda preta, sapatos pretos, um ar tímido de quem estivesse pedindo esmolas, a esmola de viver.

Terezinha... Reparo em seus sapatos pretos de salto alto (sapatos de moça, de senhorita, não de menina) e imagino que eles foram comprados pela mãe que primeiro levou outro par que não servia, que estava apertando um pouco, e depois foi na loja trocar. E tudo isso me comove, essa simples história dos sapatos de Terezinha, desses sapatos com que ela foi enterrada. Pobres sapatos, pobre Terezinha. Pensamos em outra coisa.

rubem-braga
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