Em outra crônica, dei o depoimento de um médico sobre a situação dos meninos do Rio. Muitos médicos dizem o mesmo, não apenas do Rio como de muitas partes do Brasil. A miséria e a ignorância não causam apenas uma espantosa mortalidade infantil. A minoria que atravessa os anos perigosos e sobrevive, essa massa de meninos que constitui, afinal de contas, o tão falado “Brasil de amanhã” é bem triste.

Há, sem dúvida, muitas instituições religiosas ou não, que fazem alguma coisa em favor dessa infância pobre. Há festas de caridade grã-finas em que se arranja dinheiro para isso. Mas o que a experiência tem mostrado é que tudo isso vale de muito pouco. Com toda essa caridade, e com todas as iniciativas oficiais e particulares, e todo o imenso falatório sobre o “problema da criança” — o que vemos na prática é que a situação piora. É cada vez maior o número de crianças miseráveis, crianças sem um lar decente, crianças que vão crescendo com fome, sem educação, sem esperança alguma de um futuro digno.

Muita gente que vive falando da necessidade de defender “a família brasileira” contra esta ou aquela influência não repara no fato doloroso e cruel de que é cada vez maior o número das famílias pobres que se desagregam, se perdem, se desmoralizam, graças a este simples fator miséria.

No Rio isto se vê bem. Nas classes mais pobres da população carioca os laços familiares são cada vez mais fracos. Não apenas aumenta o número de crimes sexuais, como o que antigamente se chamava “relaxação de costumes” é dia a dia mais impressionante. Às autoridades chega apenas uma parte mínima dos casos. A vítima quase sempre é a mulher que o homem abandona com a maior facilidade, grávida ou já carregada de filhos. As crianças que vão crescendo em um ambiente de brutalidade, de ignorância, de superstição e da indiferença moral, aprendem muito cedo as piores lições da vida.

O “problema da criança” é, na verdade, o problema de toda uma sociedade que não cuida de sua própria base. Uma sociedade que despreza exatamente a massa que faz o trabalho essencial para que ela exista e funcione. Esse desprezo tem a sua “revanche”. Os que se assustam com isso precisam notar que o povo está cansado de “boas intenções”. É urgente, no Brasil, uma política que se dedique realmente a resolver os problemas do povo — uma política de coragem que acabe com tanta exploração, tanto ludibrio, tanta desigualdade clamorosa. Os que confiam na força ou nas prédicas da religião já têm suficientes motivos para desconfiar de si mesmos. Os sinais são claros. Quem quer ver, vê. Quem não quiser ver que não clame depois, quando a realidade lhe entrar pelos olhos de maneira mais brutal.

rubem-braga
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