Há uma árvore morrendo na Gávea. É um flamboyant alto na frente de uma casa em reforma; parece que os pedreiros, inadvertidamente, formaram um monte de cal junto ao seu tronco. Suas folhas amareleceram, e ele definha rapidamente.

Sua dona me telefona com tristeza e aflição. Não sabe a quem se dirigir, e pergunta se eu sei: à Prefeitura, ao Ministério da Agricultura, ao Jardim Botânico? Não existe um Pronto Socorro para  as árvores. Debalde ela apelou ontem para todo o mundo, e quase não dormiu de noite, pensando na agonia de seu flamboyant envenenado.

E me transmite agora sua aflição impotente: há uma árvore morrendo na Gávea. Consulto amigos, ninguém me responde. Nunca  viram essa árvore, mas sentem a tristeza que será ela morrer, sabem que muitos anos serão precisos para formar outra com a mesma força e a mesma graça; e que melancólico, revoltante atraso de vida é perder uma árvore, ainda mais assim, assassinada lentamente, com a seiva corrompida pelo veneno, a morte se espalhando devagar por todos os seus ramos.

Só depois de muito tempo tenho uma ideia: lembro-me de ter lido, aos domingos, no Correio da Manhã, a seção de um fitopatologista. Procuro seu nome: é o dr. Hallage, mora em uma rua perdida em subúrbio distante. Mas não tem telefone.

Ponho a minha confiança na boa vontade, na cordialidade da gente dos subúrbios; telefono para o número mais próximo, atende uma senhora, explico rapidamente que há uma árvore morrendo na Gávea e preciso falar com urgência ao dr. Hallage. Ela não o conhece; mas irá chamar. E então, naquela ruazinha da estação de Bento Ribeiro, há uma senhora que atravessa a rua para ajudar a salvar uma árvore na Gávea. Sinto que o Rio de Janeiro ainda é uma cidade humana. O dr. Hallage vem ao telefone e ouve a minha voz de desconhecido apelando para o salvamento de uma árvore. Ele então se põe grave como se a sua imprudência pudesse matar uma pessoa muito querida. "O senhor compreende minha responsabilidade em dar uma consulta à distância...". Faz algumas perguntas sobre as folhas, sobre a forma das sementes; estou seguro de que é mesmo um flamboyant? Bem, confesso que suas flores (eu me lembro que as vi neste último verão) não eram bem vermelhas, talvez cor-de-rosa. "Mas eu posso confiar em seu diagnóstico? Quantos anos tem a árvore?"

E com muita reserva acede em receitar à distância; mas ainda me dá o telefone de Niterói em que poderei encontrá-lo, se a doente não melhorar.

O farmacêutico de minha esquina se espanta: para que desejo tanto sulfato de ferro? Explico que é para tratar de uma árvore, há uma árvore morrendo na Gávea. Ele não tem o pó. Mas se interessa, me pergunta se a árvore é bonita, se oferece para mandar buscar o sulfato, telefona para outra farmácia, mas a outra diz que tem apenas algumas cápsulas. E eu quero pelo menos algumas dezenas de gramas; é um remédio de urgência. O farmacêutico explica ao seu colega que se trata de uma árvore. Sinto que do outro lado o homem silencia, depois se comove, hesita, indica outra farmácia; e manda perguntar se a árvore é grande, quem sabe se as suas cápsulas…

Afinal descubro mais adiante um vidro de sulfato; e também esse outro homem magro e seco dessa terceira farmácia se interessa quando fica sabendo que é para salvar uma árvore. Sinto que ele está pensando em árvores atrás de seu balcão. Murmura: "uma árvore… será que ela ficará boa?"

Não sei, talvez seja tarde. Depois tenho uma dúvida, resolvo consultar novamente o dr. Hallage, mas desisto pensando que ele não tem telefone. Não tem telefone, um homem desses, um homem capaz de salvar uma árvore! Pediu há muito tempo mas não conseguiu; entretanto, diz um jornal, uma só casa de jogo de bicho tem 12 telefones com números diferentes. Mas a desídia municipal não chega a me entristecer. O Rio ainda é uma cidade, por mais que os homens que querem ganhar muito dinheiro tornem a vida de seu povo mesquinha e triste; não encontrei um só gesto, uma só palavra de indiferença, mas um interesse consolador, uma emoção sensível em todas  as pessoas que se sentiram de algum modo responsáveis quando ouviram esta notícia simples e sem importância: há uma árvore morrendo na Gávea.

rubem-braga
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