Matou-se Haroldo, um rapaz de 21 anos, operário. Deixou um bilhete que dizia assim: “Venho por meio deste participar o meu suicídio, e deixo essa taça como lembrança ao meu querido clube”.

Nem nesse bilhete, nem em outro que deixou para sua mãe, ele explica bem o motivo de seu desespero. Mas no segundo bilhete há uma frase reveladora: “É com profundo pesar que faço o meu suicídio. Assim Deus quis e assim foi feito. Creio que não estou fazendo loucura e sim dando tranquilidade ao anjo da guarda. Peço aos amigos e colegas que me acompanhem até a última morada”.

O pedido, esse pedido de acompanhamento, é ingênuo e patético no homem que enfrenta a solidão da morte. Mas sua única explicação é digna do poeta que escreveu — “par delicatesse j’ai perdu ma vie”. Haroldo tem pena de ver seu anjo da guarda sempre aflito e preocupado e, por delicadeza, o dispensa. De que perigos nos defende o anjo da guarda? Não será dos outros, mas de nós mesmos que nos defende; ou, ainda melhor, de nossos próprios demônios. Nisso reside a dificuldade de sua missão: pois se ele, o anjo, vive quase todo o tempo atrás de nós, um pouco à esquerda e ao alto, os demônios vivem lá dentro. Estão, é certo, presos, e postos a ferros. Às vezes berram e se agitam no porão e fazem medonho escarcéu, querendo libertar-se. Vocês já devem ter sentido isso...

De mim, confesso que poucas vezes tenho soltado meus demônios, e nunca os soltei a todos de uma vez. Meu anjo é forte, e me guarda bem. Isso chega a me irritar tanto mais que ele às vezes não tem razão e se deixa iludir com certa facilidade. A última vez foi, bem me lembro, em um bar de Copacabana. Eu entrara ali sozinho, apenas para um instante, para tomar o penúltimo copo antes de ir dormir — pois o último, como é sabido, só se bebe na hora da morte. Estava quieto, sóbrio, quase feliz. Quando apareceu alguém e me apresentou a certa criatura, meu primeiro movimento foi de timidez e talvez de defesa: Não, eu não queria mudar de mesa. A dama que eu mirava na penumbra era linda e sorria; entretanto alguma coisa me dizia para não dar aqueles três passos fatais que separavam minha mesa da sua. Desviei os olhos: mas em certo momento ouvi um murmúrio muito leve, quase inaudível. Olhei: era o meu anjo da guarda que tinha mudado de mesa, e sussurrava coisas ternas àquela pessoa, embevecido. Parecia que ele havia encontrado um anjo irmão. Ergui-me, dei três passos, sentei...

Hoje quando penso nisso e olho meu anjo da guarda ele baixa os olhos. Sabe que me entregou aos demônios e agora tenta me amparar — mas com que autoridade? Sei que muitos não acreditarão nessa história, e a acharão frívola e falsa. Mas cada um sabe o que fazem seus anjos e demônios. 

Haroldo penalizou-se de seu anjo, e matou-se. Que fazem os anjos dos suicidas? Que lhes acontece quando vão prestar contas ao Criador de sua perdida criatura? Depois daquela noite passei a desconfiar do meu; talvez o Senhor tenha me dado o anjo da guarda de um antigo suicida, depois de tê-lo deixado sem emprego muito tempo, para experimentá-lo. Mais forte que Haroldo, espero, ao longo das noites tristes, que ele se canse de mim.

rubem-braga
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