Kô e filhos desfrutando uma farta safra de caquis, chácara Arara, Londrina-PR, 1948 circa. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Eram três as coisas pelas quais Clarice Lispector vivia: amar os outros, escrever e criar seus filhos. As três experiências eram seu norte. Amar os outros, como sabem os bem-aventurados, é uma disposição tão vasta que incluía até o perdão para ela mesma, “com o que sobra”. Escrever, uma vocação constantemente aperfeiçoada pela “vida se vivendo em nós e ao redor de nós”, era seu “domínio sobre o mundo”. Quanto à maternidade, que escolheu viver de caso pensado, era um remédio para a solidão: “Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo”, disse, embora ciente de que um dia seus dois meninos abririam “as asas para o voo necessário”. Afinal, não é segredo que não criamos “os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos”.
Sei que isso não é coisa que se diga, mas já que mencionamos irmãos, é verdade que todo filho tem um palpite sobre quem é o preferido, por mais justa e generosa que possa ser a mãe. Com Antônio Maria não foi diferente: dos cinco irmãos, ele tinha convicção de que era o predileto da mamãe. Restava entender o porquê. Pena não era, “porque pena é uma coisa e amor é outra” – mesmo carinhoso, o gesto da pena é “sempre vacilante e triste”, ao passo que o do amor “chega a ser bruto, de tão livre, alegre e descuidado”.
Ele era o favorito – “eu sabia e ela sabia que eu sabia” – e ponto final. A mesa do café era uma grande demonstração da cumplicidade dos dois, evidente “na fatia de bolo” maior, “na talhada de requeijão” mais farta, no “sobejo do seu copo d’água”. Só tinha um defeito, a mãe de Maria: não ser sua filha. “Sempre foi metida a saber mais que eu”. Ora essa.
Aos pés do Morro da Viúva, no Rio de Janeiro, Paulo Mendes Campos certa vez flagrou uma demonstração dos afetuosos exageros do Coração materno. “Duas senhoras, ambas de cabelo branco”, preparavam-se para embarcar no ônibus quando o motorista avisou que só tinha um lugar – pois saiba você que, sim, outrora os lotações não andavam superlotados. “A velhinha mais velha”, que já estava com o pé no degrau, recuou com dificuldade. “A velha mais moça” protestou: “Vai, mamãe, vai a senhora, eu vou em outro”. Ela não quis: “Não, minha filha, eu não posso te deixar aqui sozinha”. Uma sequência de “vai, mamãe” foi rebatida por outra de “não, minha filha”, enquanto os passageiros aguardavam “com a tolerante paciência de quem tem ou já teve mãe”.
Até que a filha docemente perdeu a paciência, “segurou o braço da velhinha”, “empurrou-a com o mínimo de força necessária” para dentro do ônibus e disse que pegaria o próximo. Envergonhada, a mãe sorriu, pediu perdão aos outros passageiros, ajeitou-se no banco e comentou com a vizinha: “Coitadinha! Eu fico morrendo de pena de deixar ela aí, só, tão longe!”. Da janela, ficou olhando os ônibus que paravam ao lado no sinal, querendo reconhecer o rosto da filha – até que a encontrou, e “as duas se sorriram como depois de uma longa e apreensiva travessia”, antes de seguir cada qual o seu rumo.
Sorriem também a mulher e a criança que Rubem Braga avista na praia pela manhã bem cedinho, quando ainda quase mais ninguém pôs os pés na areia. A mãe fala com o filhote, que deve ter dois anos, “ergue-o no ar, brinca, ri, toda contente de ver seu menino nu brilhando ao sol”. O cronista pensa em prosseguir, mas se detém um pouco e observa a cena: é a primeira vez que o menino entra no mar. Nos braços da mãe, ele está sério. “Uma língua de espuma avança até ele, molha-o de leve. Ele chora, olha a mãe que o excita rindo, batendo palmas. Ele se anima outra vez.” A mulher bate com a mão na água, “sempre falando, rindo”, e o menino “olha, entre inquieto e divertido”.
Afastando-se, já de longe, Braga se senta na areia e contempla mais um pouco. Já não distingue rostos nem ouve vozes, e “a silhueta cortada contra a luz que se reflete no chão molhado” faz parecer que a moça está nua, como o seu menino. Na simplicidade e na beleza solene daquela espécie de Batismo, a jovem mãe “ensina o mar e o mundo à sua cria; transmite-lhe a experiência da espécie e o sentimento dos deuses”.