Sertão do Nordeste, Brasil, década de 1970. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Em janeiro deste ano, a obra de Graciliano Ramos entrou em domínio público, e alguns de seus romances já chegaram de cara nova às prateleiras. Até o momento, no entanto, não se tem notícia de reedições dos seus livros de crônicas. Embora a prosa curta do alagoano seja ofuscada pela longa, suas crônicas sobreviveram ao tempo e foram compiladas nos volumes póstumos Linhas tortas e Viventes das Alagoas, ambos de 1962.
Três dos nossos cronistas aqui do Portal escreveram sobre Graciliano, sendo Rubem Braga o mais chegado no assunto. Não é pra menos, já que os dois foram vizinhos durante alguns meses de 1937, no Rio de Janeiro. Braga morava numa pensão da rua Corrêa Dutra, 164, no Catete, e levou o colega para lá. Um lugar barato era exatamente o que ele buscava, sem dinheiro para bancar o aluguel de uma casa e já angustiado por estar hospedado com a esposa na casa de José Lins do Rego, no Humaitá. Graciliano tinha saído da prisão recentemente e, depois de longos 10 meses e 10 dias confinado, contava com a ajuda de amigos para se reerguer, física e moralmente.
Ao chegar na pensão, segundo seu biógrafo Dênis de Moraes, Graciliano se queixou do cheiro de carne frita que exalava da cozinha – “Isto aqui parece pior que a Casa de Detenção!”, disse –, mas acabou ficando. Além de Braga mais a esposa Zora Seljan, outros jovens intelectuais, como Moacir Werneck de Castro e Lúcio Rangel, compunham a vizinhança. Toda noite eles se juntavam em algum quarto, já que não havia sala comunitária, para conversar sobre literatura, discutir política, jogar xadrez e beber cachaça.
Foi naquele quartinho pequeno, de duas camas, duas cadeiras, um armário velho de pinho e uma mesinha bamba escorada por um grosso dicionário, que Graciliano se recompôs da violência carcerária e botou Vidas secas no papel. Em “Memórias”, uma resenha sobre o livro Memórias do cárcere, Braga escreve sobre a prisão arbitrária do amigo, sem deixar de apontar os agentes responsáveis por tal perseguição política, inclusive o presidente Getúlio Vargas, de quem Graciliano, pelo menos nesse período, era um confesso admirador.
“O que o livro narra é desumano, é torpe”, escreve Braga. Além de seu valor de “reportagem terrível”, Memórias do cárcere é escrito com “a crispada força” do velho Graça, que “se debruça sobre o animal humano sujeito às piores provas”. Para o cronista, é neste livro que Graciliano se prova, “mais do que em qualquer outro, um grande escritor”.
Em 27 de outubro de 1942, por ocasião de seu cinquentenário, Graciliano foi homenageado com um jantar solene, no qual recebeu um prêmio de 5 mil cruzeiros pelo conjunto de sua obra, oferecido pela Sociedade Felipe de Oliveira. Diversos artistas, intelectuais e políticos se reuniram no restaurante Lido, em Copacabana, nesse ato que tentava reparar um pouco as humilhações que o escritor tinha sofrido na prisão. Rubem Braga não compareceu, mas enviou o belo “Discurso de um ausente”, em que saudou sobretudo a atuação política do amigo, sempre combatendo “a tolice que brilha em público”.
De passagem, Rachel de Queiroz comentou a cerimônia na crônica “Graciliano”, um pouco admirada pelos relatos de que ele tinha recebido as homenagens graciosamente e até feito discursos, o que contrastava com sua imagem de “esquisito, esquivo, muitas vezes tão malcriado quanto qualquer dos seus personagens”. A cronista não queria, com isso, “censurar-lhe as esquisitices, a misantropia, as esquivanças”, pois o escritor já tinha alcançado a glória literária e não precisava cortejar a amizade de ninguém. Afinal, diz Rachel, se toda a literatura brasileira sumisse num acaso sobrenatural e só sobrassem os livros de Graciliano Ramos, sua obra seria suficiente para comprovar que “nossa literatura não existira em vão”.
Anos depois, já na década de 1990, na crônica “A república e o golfo”, Otto Lara Resende relembrou um episódio do folclórico e radical pessimismo de Graciliano. Na redação do Correio da Manhã, o alagoano “penteava os textos que mereciam melhor tratamento”, e costumava trabalhar em silêncio, fumando. Certa vez, num dia de especial mau-humor, parou diante de um mapa do Brasil na parede e, apontando o dedo para as suas Alagoas, murmurou sarcástico: “Bom lugar para fazer um golfo!”.
Resta aos leitores do velho Graça torcer para que alguma editora decida botar nas livrarias uma reedição das suas crônicas. Veja só uma pequena e preciosa amostra do que nos aguarda:
"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem em seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."