Relendo agora os volumes das Obras Completas de Graciliano Ramos, lembrei-me do que dizia a propósito de Angústia, anos atrás, um velho professor americano, muito interessado em literatura brasileira: “Escrever não é fazer caretas”. O homem era desses otimistas inveterados — ou, melhor definindo, era um americano por derradeiro. Para ele, o escrever havia de ser sorrir ou chorar belamente, compondo mensagens de fé, de esperança, de todas as virtudes teologais.

No entanto a mim parece o contrário, que escrever é propriamente fazer caretas, caretas ao mundo, à vida, a si próprio. Pelo menos para os que pertencem a uma determinada estirpe literária, que outra coisa fazia Swift, grande antepassado de Graciliano, senão caretas? E Machado, sorria acaso? Verdade que tanto Swift como Machado, portavam-se como o velho Buster Keaton do cinema mudo: se não riam, faziam rir. Graciliano é diferente, jamais chega ao traço de humour, o seu limite máximo é o sarcasmo. E é isso que, (sendo ambos tão semelhantes em grandeza) o separa de Machado de Assis. Num a ausência, no outro a presença da intenção humorística. Num a amargura sobrenadando a obra toda, nua e ríspida; no outro a amargura se disfarçando em sorrisos maus, em alfinetadas espirituosas.

E sendo assim, mestre do sarcasmo e do pessimismo, à sua maneira seca, sem entusiasmo e sem grandiloquência, — Graciliano se isola na literatura nacional, só tendo parecença mesmo com o nosso sublime mulato, porque também é mestre da linguagem, que domina com refinada segurança. No Brasil só ele e Machado, quero crer, realizaram o encontro, na mesma pessoa, da autêntica vocação de romancista com um insuperável virtuosismo linguístico. Nada de talento carecido de estilo, ou nada do oposto, o estilo carecido de talento. Temos em G. R. simultaneamente ambas as coisas, talento e estilo, a força criadora do romancista se servindo superiormente daquele instrumento verbal de alta qualidade que é o seu estilo literário, — tão pessoal, tão perfeito e sem preciosismo, tão preciso e sem mesquinharia de detalhes, e sem que o realismo muitas vezes cru de certa expressão jamais entre em choque com a elegância sem ouropéis, a severa beleza do conjunto. Estilo que evoluiu num ritmo seguro desde o tom vagamente brilhante e ligeiro, um pouco a Eça de Queiroz, do seu primeiro romance Caetés, até a perfeição clássica, definitiva, da forma artística de Vidas secas.

O que não sei é se agradará muito a mestre Graciliano essa posição de pontífice máximo das nossas letras a que sua obra o ergueu. O homem é esquisito, esquivo, muitas vezes tão malcriado quanto qualquer dos seus personagens. Verdade que nas festas do seu cinquentenário soube portar-se à altura, recebeu graciosamente as homenagens e ouvi dizer até que fez discursos.

Aliás, longe de mim censurar-lhe as esquisitices, a misantropia, as esquivanças. Ele não precisa mais de cortejar a glória, nem de amimar os contemporâneos para que lhe enfeitem com flores de papel o seu lugarzinho do futuro. O tamanho da glória do romancista de Angústia não está mais nas mãos de ninguém. E se por um acaso, por obra de uma catástrofe natural ou política, sumisse num incêndio toda a literatura brasileira e só sobrassem do fogo os livros de Graciliano Ramos, — bastariam esses romances para justificá-la: sozinhos eles afirmariam que, nos seus três séculos de vida, a nossa literatura não existira em vão.

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