Fulanos de tal

Pedestre, Brasília-DF, 1960. Foto de Peter Scheier/Acervo Instituto Moreira Salles.

A crônica, você sabe, é literatura que se apega às coisas miúdas da vida. Nasce do rés do chão com uma “simplicidade reveladora e penetrante”, como nos ensinou o professor Antonio Candido, e joga luz em situações despretensiosas, fazendo de pessoas comuns as suas personagens principais.

Vinicius de Moraes, por exemplo, relembra em crônica um trabalhador que marcou sua infância. Como encerador, o Seu “Afredo”, que subtraía o “l” do próprio nome ao se apresentar com pressa, não era lá grandes coisas – depois de seus serviços, Dona Lídia, a mãe do Poetinha, “ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada pé, para melhorar o lustro”. Mas como linguista, “cultor do vernáculo e aplicador de sutilezas gramaticais”, não havia igual.

Ele era um distinto quarentão em quem, às vezes, a preocupação linguística perturbava uma colocação pronominal ou a mutação de uma palavra. Certa vez, durante um serviço na casa da mãe de Vinicius, Dona Lídia queixou-se “do fatigante ramerrão do trabalho doméstico”. A recomendação daquele homem foi precisa – ou quase: “O que a senhora precisa fazer é ir a um médico e tomar a sua quilometragem”, disse. De outra feita, Seu Afredo ouviu uma mulher cantarolando e tocando piano ao fundo. “Se ela pensa que pode cantar no rádio com essa voz, tá redondamente enganada”, palpitou. Nem em show de calouros. Mas para o piano, sim, ela tinha talento de sobra: era uma “eximinista pianista!”.

Igualmente peculiar era Jacinto, um sujeito “franzino e manso” que habitou as memórias de Paulo Mendes Campos. Vivendo “de biscates e do seu talento humorístico”, o popular sobrevivia à base de pequenos serviços e gracejos improvisados. Fazia um pouco de tudo para conquistar “o pão de cada dia e a cachaça de cada noite”.

Apesar da dura realidade, Jacinto parecia sempre aéreo, indiferente a questões terrenas. Ria da própria desgraça com “filosofia estoica e temperada de humor”. Dele, nunca se ouviu “uma palavra áspera, uma lamúria”. Nem sequer respondia às crianças impiedosas que o insultavam quando passava bêbado. “Acima de todas as misérias”, ele só respondia com palavras alegres, “às vezes numa língua particular, ininteligível”.

Numa noite fria de Belo Horizonte, Jacinto caminhava sem destino e trocando as pernas, “como a folha morta do poeta”, quando um vento mau o soprou para a rua e, perdendo o pouco equilíbrio que tinha, fez com que se estatelasse no asfalto, com os braços abertos em cruz bem do lado do trilho do bonde. Por um descuido do anjo dos bêbados, as rodas do veículo que vinha vindo deceparam-lhe a mão direita. As pessoas correram para acudi-lo, e “no mistério indecifrável da tragédia que acabava de acontecer”, ele começou a andar em círculos, procurando a mão amputada e clamando a ajuda dos astros: “Cadê minha mão, cadê minha mãozinha?!”. Mas o céu permaneceu indiferente, “estrelado e duro como um céu pintado”.

Menos trágico foi o desfecho do ascensorista relembrado por Carlos Drummond de Andrade em crônica de 1965. O Amigo, como era chamado, operava o elevador do Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, onde Drummond serviu como funcionário público por décadas. Sua capacidade de “espalhar em sua cabina a alegria de viver” era tanta que ofuscava a melancolia inerente ao trabalho de permanecer preso numa jaula pequenina, subindo e descendo sem sair do lugar.

Com um batente desumano de doze horas de serviço mais “uma barca de Niterói pela madrugada”, o Amigo esbanjava seu otimismo gratuito, mesmo “sem motivo algum para agradecer à vida”. O apelido surgiu em retribuição ao uso “universal e aliciador” que fazia da palavra “amigo” a quem quer que adentrasse seu elevador. Ninguém sabia que seu nome verdadeiro era Afonso Ventura, mas todos sabiam “que seu maior amor era o Vasco da Gama”.

Em seu rosto, liam-se todas as vitórias do Vasco. As derrotas, nunca, “pois o rosto do Amigo continuava a espelhar a vitória anterior”. Ou, então, espelhava já o triunfo futuro, infalível, quem sabe uma goleada de 6x0. Para ele, o Vasco sempre ganhava. No máximo, “deixava de ganhar desta vez”. Foi ele, aliás, o responsável por converter Drummond, pouco chegado em futebol, em vascaíno, tamanha era sua paixão pelo time.

Certo dia, o Amigo sumiu, levando consigo sua alegria. Tinha se mudado para Brasília, onde a promessa de um emprego melhor talvez “lhe suavizasse a pobreza”. E por lá mesmo morreu, não se sabe se a tempo de comemorar a conquista da Taça Guanabara daquele ano. Na missa que os colegas do Rio encomendaram, seu clube do coração mandou um representante para honrar sua memória. “Imagino a alegria infinita da alma, sentindo o Vasco presente”, concluiu nosso cronista. O Amigo merecia.

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Nota do editor: É provável que o poema a que se refere Paulo Mendes Campos seja "Canção de outono", de Paul Verlaine, cuja estrofe final, em tradução do próprio PMC, alude à mesma imagem: "E em redemoinho/ O ar daninho/ Me transporta/ De cá pra lá,/ De lá pra cá,/ Folha morta".