Esse Carnaval hesitei entre o mar de Cabo Frio e os pastos do Chenica, em Valença — andei pensando também na casa de um amigo em Petrópolis e na fazenda de outro, em Minas — e para encurtar conversa, fiquei mesmo no Rio de Janeiro que, afinal de contas, é um bom lugar, com mar, montanhas, pastos com variados cavalos e vacas e outros animais, pastos que outrora, no tempo vivo da mocidade, nós galopamos a nitrir, oh Zico. Pois fiquei por aqui e saí por aí, a ornejar sambas e zurrar marchinhas, entre os rinchos mil da folia desta nobre patuleia, oh Zico.

Oh Zico, eu te darei notícias, embora, perdido entre as névoas hibernais desses países baixos, você as ache confusas. Quem vai muito bem é a Mária Candelária, alta funcionária; e nosso amigo David Nasser confessa que chorou quando encontrou confete na fantasia que usou o ano passado; fez uma frase mimosa declarando que o confete é um “pedacinho colorido de saudade”. Haroldo Lobo (mas não confunda com o Fernando, que também é Lobo, nem com o Barbosa, que também é Haroldo) pede a Eva que o leve para o paraíso agora e prevendo uma restrição devido a seu excesso de roupa, afirma: “eu jogo a roupa fora”. Oh Zico, tire a mão daí, tire a mão, você já bebeu demais. Quem gosta de broto é cabrito — é cabrito e eu também; Ana Maria voltou, mas desta vez não está “na beira do mar”, ou melhor, está sim, mas está, mais especificadamente, “na beira do cais”; em todo caso continua triste chorando, como é seu costume. Ao passo que outras vivem por aí sa-sassaricando, a Maria lava roupa lá no alto lutando pelo pão de cada dia. Eu te juro, velho, que há uma simplicidade evangélica neste quadro de todo dia. “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, sobe o morro, não se cansa, pela mão leva a criança. Lá vai Maria...” Isso é de Luiz Antônio e Jota Junior, que você não conhece, nem eu. O nosso Nássara avisa que “aquele mundo de zinco que é Mangueira desperta com o apito do trem”, o que também é poesia e, para quem não conhece a Mangueira até pode parecer começo de filme francês, com Jean Gabin acordando de cara amarrada. O dito Nássara apresenta uma espécie de solução (provisória) para os problemas de abastecimento: como a frigideira ia enferrujar por falta comida para cozinhar ele diz: “não vou chorar; pego a frigideira e sáio prá rua, prá batucar”. Oh sim talvez, como diria Lenine, o Carnaval seja o ópio — o ópio não, a maconha — do povo.

Mas vida triste e cruel tem o homem que apanha papel. Sabes, velho, esse personagem de Daumier tem profissão que é um buraco: só pode ir para casa depois de encher o saco. O pintor Bandeira viu no Catete, quando saía do High Life, três autênticos apanhadores de papel que cantavam essa marcha que Peterpan e Afonso Teixeira fizeram para eles; um dos três, talvez um pouco bêbado, fazia uma espécie de balé ao mesmo tempo que cantava, abaixando para um lado e outro: “um papel aqui, um papel ali...”

E Paulo Soledade conta a história lírica de um grão de areia, de uma estrela do mar: mas você sabe aonde tem mulher tem sempre um bando de pajé. O diabo é que não se pode mais mexer com uma mulher: o doutor não gosta, o doutor não quer.

Bom, Zico, eu vou dormir, ando necessitado; e no fim de tudo o que ouço em meu sono é um samba que tomou conta da rua e das almas: “eu quis fazer você chorar...”

rubem-braga
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