Meu relógio está parado. Ligo para a portaria do hotel: são 3h45 da manhã. Saí do escritório já à noite, exausto; jantei sozinho, ouvindo a charla dos negros de Porgy and Bess nas mesas vizinhas, e logo subi para o quarto com um pacote de revistas e jornais do Brasil que a Panair trouxe ontem. Eu devia ter logo me posto a trabalhar: há uns dez dias não faço uma crônica, pois somente há dois ou três a dor de meu braço diminuiu bastante para me permitir isso. Detesto essa doença que arrumei e começo por implicar com seu nome pretencioso e feio: bursite. Saí do Brasil quase bom, mas tive de passar por Buenos Aires e a umidade concentrada de seu inverno deve me ter feito mal. 

Mas não é de meus achaques e sim de meus terrores noturnos que eu devia escrever. O avião volta amanhã cedo e tenho de pegar o comandante Waldemar em outro hotel antes das 8h30. Trabalhei demais estes últimos dias no escritório, pondo o serviço em ordem; enjoado de mandar fazer coisas, foi com uma espécie de alegria humilde que me pus a trabalhar eu mesmo, com minhas mãos, diante da máquina. Sou um trabalhador manual; aborrece-me ditar, não sei redigir um bilhete razoável ditando; é com meus braços, com minhas mãos que me acostumei a ganhar a vida. O serviço do escritório, menos burocrático do que o nome sugere, absorveu-me completamente estes dias. Deixei para fazer esta noite as seis crônicas que devo mandar por esse avião, para cobrir os deveres de uma semana.

Mas os jornais e revistas do Rio contavam com minúcias as histórias tristes que só conhecíamos através de pequenos telegramas. A tensão política desta segunda quinzena de agosto; o enterro de Carmen Miranda; o incêndio do Vogue. No lugar de trabalhar, fiquei lendo e só pela meia-noite devo ter adormecido; acordei agora, com os olhos ardidos pela luz acesa. Não ouso bater à máquina, tendo receio de despertar meus vizinhos de hotel. Escrevo à mão, mais tarde baterei à máquina. Escrevo mal à mão; sou um trabalhador afeito à máquina, como um tecelão de fábrica. Nem sequer sei medir o tamanho da crônica, assim manuscrita. De resto não estou com o sentimento de estar fazendo uma crônica, mas de estar escrevendo a algum amigo do Brasil, desta maneira desordenada e íntima. Vou fazer uma pausa, fumar um cigarro.

rubem-braga
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