Tinha no rosto a expressão solitária e concentrada de um homem vendo fotografias obscenas. Suas gravatas eram coloridas demais, como se do seu peito estivessem fazendo sinais para os desconhecidos na rua. A boca, sempre aberta, fazia um trocadilho com bocó. Tudo era medíocre ou desagradável. Dava a impressão de que, se mexessem muito com ele, acabaria admitindo que sua mãe era medíocre, o pai desagradável, a mulher e os filhos, todos medíocres e desagradáveis, e que, dentro dele, batia um coração repetindo: medíocre, desagradável, medíocre...

Se, por fora, fazia muito barulho, batendo nas coisas, empostando a voz, empurrando portas, por dentro era de uma quietude de catedral, silêncio de ausência não de presença. Era um homem mais de fora que de dentro. Tinha a fé inquebrantável daqueles que juram não acreditar em nada. Parado na esquina observando a mudança de cores dos sinais, olhos levantados, jornal encostado ao peito, parecia esperar os céus se abrirem e a mensagem divina surgir. Os outros, como que adivinhando os tropeços que nele se sucediam, mantinham-se à uma distância cautelosa: uma poltrona vazia ao seu lado no cinema, cinco pessoas nas avenidas.

Nunca entendeu aquele desentendimento: ser península no corpo e ilha na alma.

Teve medo a vida inteira.

*

Sonhou que a morta vivia: estava num quarto pequeno sem móveis, estirada numa espécie de lousa um lençol a cobria até onde começavam os seios, apertando muito o pouco que era. Estava mais magra e mais morena do que quando em vida. Um lenço azul com bolinhas brancas cobria-lhe o rosto até a nascença dos cabelos. Começou a escorregar, virou de banda, como se fosse cair no chão. De sua boca escapou um muxoxo. Como ele entendia pouco da parte física da morte, pensou, no sonho, que fossem barulhos próprios aos mortos. Mas o muxoxo começou a vir com segurança de fala e expressão, eram palavras vivas de boca viva. A morta levantou as mãos até o lenço, baixando-o devagar, mostrando o rosto indistinto. Manchas amarelas, sobrancelhas e pestanas crescendo desordenadas. Pegou da mão do vivo e levou-a até a boca. Ele pensou que fosse carinho. Era para mostrar que não tinha mais um só dente. Que, na realidade, tudo fora brincadeira, perdera apenas os dentes e que os médicos isso e aquilo e aquilo outro... A falar, a falar e a falar... Ele baixou o rosto, grave, e levemente beijou a face daquela que voltara a viver, num contragosto calado, por demais antigo e conhecido como o quê. Inapelável, sentia pesar as correntes que só ele conhecia (tão pesadas que davam para se navegar nelas).

Acordou aflito e quente, juntando aos poucos seu corpo no leito.

Descobriu uma terceira morte ― que a servidão que acreditava morta, vivia ainda.

ivan-lessa
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