Periódico
Manchete

Publicada no livro O cego de Ipanema, de 1960, com alterações.

Dois embrulhos fatalizavam meu caminho: na mão direita, um pacote de frutas; na esquerda, um ramo de rosas; Flores e frutos para uma jovem senhora que acabara de ser mãe de um varão. 

Lua matutina é que mais me surpreende, e andava uma assim no firmamento, cor de cobre pálido. Vi na esquina que se armavam no ar os 14 pavimentos de um soneto: lua imersa em água azul, peixe redondo, os manequins boiando na piscina; na surpresa do primeiro terceto, um coração devassado; no último verso, o poeta diria que viver é tão inevitável quanto a morte. Mas simplesmente continuei a caminhar; a poesia é desnecessária. Pesavam-me os embrulhos. Quase à entrada da casa de saúde estava um homem espapaçado ao sol. Sentiu-se mal de repente, contou um rapaz de tamancos e bicicleta. Colapso, emendou uma velha de óculos novos.  Um homem morto, de cor parda, hirsuto, roupas encardidas e esfarrapadas. Só lua no céu. Frutos e flores nas mãos. Mortinho da silva, confirmou, com o prazer das coisas realizadas, a infalível velha dos dramas de rua. Aliviei-me de um embrulho, colocando no peito escuro do morto o ramo de rosas. Olhei o grupo, olhei a velha, que me olhava sem entender o gesto fora do ritual urbano, entrei na casa de saúde. Os vivos não precisam de flores.

***

Quando o cego, em reunião na casa dum amigo, disse que gostaria de viver numa cidade cuja temperatura oscilasse entre 15 e 20 graus, e cujo céu todos os dias fosse azul, ninguém sentiu vontade de sorrir. Nem cheguei a sentir um leve arrepio de tristeza. Ele falou com a voz clara e cheia de sentido. Nós todos entendemos, entendemos de repente um espaço emocional extraordinário, que desconhecíamos: o azul do céu não é uma cor, mas uma qualidade do mundo, uma luminosidade de todos os sentidos, uma fragrância, um ar mais delicado, um concerto de sons, uma transparência do universo. 

Nos dias cinzentos, o mundo é opaco e áspero; as pessoas falam com um timbre de voz mais rouco, e inquieto; os pássaros não cantam; a brisa é mais úmida; o ar, mais pesado. O cego desejava que todos os dias fossem azuis; precisava dos dias azuis mais do que nós, os distraídos na multiplicidade do mundo, dispersados em tantas sensações supérfluas. Um poeta disse uma vez que Deus é azul. Não creio. Mas creio nos poetas. Creio nos cegos. Creio no azul. 

***

Nove horas da noite no Jardim de Alá. Um homem, que acabara de comer, raspou um resto de macarrão do fundo da lata e o atirou sobre a calçada. Não se sabe de onde, da moita de capim, do desvão de ponte sobre o canal, surgiu um garotinho escuro, de uns seis anos de idade, esmulambado. que se debruçou sobre o resto de comida empoeirada e começou a comer, sacudindo os fios de massa para limpá-los um pouco. Pode parecer exagero sentimental dizer que apareceu um cachorro. Mas estou apenas testemunhando este episódio e preciso confessar que apareceu mesmo um cachorro vira-lata, igualmente magro, fungou sobre o menino, que defendeu sua comida, e desapareceu.

 Um rapaz passou a mão pela cabeça, e suspirou com sinceridade:

- Meu Deus do céu!

Uma senhora, que se dirigia para um automóvel, em companhia dum homem, ouviu a exclamação e disse: 

- Qual, a gente não deve se impressionar. Este menino está com fome coisa nenhuma.  Isto é pura encenação!

O menino continuou a comer, o casal entrou no carro e partiu.

Que dizer? Vulgarmente, digo apenas que tenho pena. Pena do menino comido pela fome, e pena daquela senhora comida pelo remorso, pela má consciência; fazendo força para engolir a piedade que lhe subia das entranhas de mulher como um acesso de vômito. 

paulo-mendes-campos
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