Fonte:  Caderno B,  Jornal do Brasil, de 26/03/1971.

1. Está realmente bela a avenida Atlântica. Sinto grande prazer quando rolo de carro pela nova pista. Os motoristas instintivamente diminuem a marcha, porque avançam paralelos a uma incomparável combinação de mar e montanhas e céu, e pretendem sorver esse espetáculo até onde for possível.

Tenho observado que os cariocas estão a tal ponto empolgados com essa obra que se tornaram irracionais. Você não pode fazer nenhuma restrição; eles só aceitam elogios. Entre as pessoas com quem discuti o problema, a que deu a prova mais completa dessa irracionalidade foi um pai de família (dois filhos), culto, viajado, psicanalisado. Argumentei:

— Que é bonito não há dúvida, mas onde estão as famosas passarelas? O banhista que mora em Copacabana, o turista hospedado no Copa ou no Miramar vão ter que atravessar três pistas de alta velocidade. Agora você imagine um menino de 11 anos que, na manhã mais quente de janeiro, pretende caminhar na direção das ondas. Está descalço, tendo o asfalto fervente sob os pés. Ele vai esperar uns dois ou três minutos, porque sempre se acredita que surgirá uma clareira entre a multidão de automóveis. Mas no quarto minuto o pé dele ficará com bolhas, e então ele vai atravessar de qualquer maneira. Aí vem um fusca e pimba! É o que vai acontecer. E nós só vamos reclamar uma solução quando houver uma chusma de meninos atropelados.

— Não temos que reclamar solução nenhuma — respondeu ele. — Menino é para ser atropelado mesmo. Não há nada mais chato do que menino na praia. Ele joga areia na gente, espadana na água e molha os cabelos da mulher da gente... Menino não tem nada que fazer na praia, não senhor.

“Então, tá”, suspirei.

2. Comecei a suspeitar que o motorista do táxi era maluco quando ele deu uma freada violenta para não bater no fusca que ia na frente. Isso aconteceu entre o Flamengo e Botafogo. A freada era justa, mas ele não precisava em seguida meter a cabeça do lado de fora para xingar assim o homem do fusca:

— Idiota! Eu só lamento não estar dirigindo um ônibus, porque se estivesse não ia dar freada nenhuma não, ia era despedaçar você e seu carro, seu idiota!

Tive a nítida impressão de me encontrar à mercê de um homicida. Mas logo depois passamos por um colégio e a garotada estava saindo das aulas, e fazia uma algazarra tremenda. O motorista deu uma boa risada e comentou:

— Criança fica doida quando termina a aula. Olha só a alegria deles...

Entramos na direção do Largo dos Leões e ele continuou:

— No meu tempo de menino a gente estudava numa escola pública, e na esquina funcionava um colégio particular. Os alunos desse colégio eram naturalmente ricos e nós pobres, e eles usavam um boné branco. Então nós botamos neles o apelido de beiju. E quando acabavam as aulas a gente ia esperar a saída deles, e quando eles apareciam a gente gritava: “Beiju! Olha o beiju”! E o pau comia feio, seu moço. Todo santo dia o pau comia feio...

Pois bem, pensei eu, no princípio era um assassino latente, e agora temos um homem manifestamente terno. Não se deve julgar ninguém precipitadamente.

Foi pensar isso e ser desmentido pelos fatos. Topamos um engarrafamento daqueles que ninguém avança e o antigo adversário dos meninos de boné me perguntou se a gente podia entrar à direita, pois ali ele talvez achasse uma saída. “Por mim, tanto faz”, respondi. E ele entrou. E assim percorremos seis ruas (eu disse seis) na mais descarada contramão.

Agora, quem me conduzia era um suicida... Fechei os olhos para só acordar no Leblon.

jose-carlos-oliveira