1. E a cidade que se chamava Rio de Janeiro, sem ter conhecido a penúria da guerra dentro de suas portas, ou a desolação de bombardeios inimigos, começou a arruinar-se.

2. E chamada com sarcasmo e amargor de Velhacap, começou a virar folclore.

3. E os seus moradores foram expostos a muitas provações, e as suas aflições, multiplicadas; e os donos da cidade, apelidados vereadores, de acordo com os donos da vida, não se compadeciam de seus sofrimentos, e nem por eles se interessavam.

4. Muitos juntaram dinheiro, terras e casas, e não com direito; estes viviam das mágoas da cidade.

5. Quem saía ao campo encontrava os animais a engolir vento como os dragões; quem ficava na cidade testemunhava em toda parte a incúria ou a indiferença.

6. Pela desolação de tudo, confundiram-se os homens e ficaram tristes; e a esses homens era pedida uma inútil paciência.

7. Em Rio de Janeiro sobravam as tristezas e tudo faltava; mesmo o mar, grande generoso, trazia agora às praias excremento e óleo; e às vezes lançava pedras e paus contra os que passavam pelas ruas.

8. E o povo, que era chamado carioca, foi contaminado de um exaspero mudo, um povo que outrora vivia descuidado, a trazer nos lábios palavras de alegria e amor.

9. A água era escassa, e mesmo a de beber era pouca. E também sobre esta aflição não puseram os olhos; porque para os donos da cidade bastava a soda que tornava o uísque mais leve, e nas grandes festas bebiam com fartura uma água espumante, comprada em terras estranhas, chamada champanhota.

10. Escasseavam na feira os legumes, as hortaliças e os cereais; e custavam os olhos da cara; e desapareciam quando uma coisa chamada Cofap procurava torná-los mais fáceis.

11. Em Rio de Janeiro não houve poder humano contra a carestia; porque a mão dos homens era fraca e débil o entendimento.

12. O povo comeu aflições como ervas daninhas; e os preços subiam; e o dinheiro fraco do pobre não comprava mais nada digno de valor.

13. E a carne desapareceu, e poucos pedaços apareciam nas trevas da noite como os ladrões, e para comprá-los as filas estendiam-se pela madrugada, e o Sol chegava para denunciar em vão esta miséria.

14. Havia muitos crimes na cidade porque a fome se arma de uma faca; e um homem, antes de matar-se, matou a mulher e os filhos, escrevendo um poema de sangue nas paredes de sua pobre casa.

15. Mas as riquezas aconteciam como sempre ou de repente; e foi preciso inventar uma linguagem nova para se descrever os prazeres e ociosidades daquilo que se chamou intrusivamente café-society.

16. Como o látego no lombo do asno, o Rio de Janeiro teve intensamente o seu castigo; e os vícios de homens públicos agravavam dia a dia a conturbação do povo; e esses homens eram coisas vãs e vaidosas, e as obras deles dignas do riso, não fosse a propagação da miséria e da injustiça.

17. E a carência de alegria ensombrecia as caras e hostilizava os gestos; e nos morros o nascimento e a morte eram indiferentes.

18. O Rio de Janeiro tornou-se em desolação e em vaia perpétua; e todos que passam por suas ruas ficam espantados e meneiam a cabeça; porque Rio de Janeiro se quebra como uma vasilha de barro; e os donos da cidade não percebem os clamores de sua ruína.

paulo-mendes-campos
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