Fonte: Crônicas efêmeras: João do Rio na Revista da Semana. Pesquisa e apresentação de Niobe Abreu Peixoto, São Paulo, Ateliê Editorial, 2001, pp. 62-64. Publicada, originalmente, na Revista da Semana, de 11/03/1916, sob o pseudônimo de Joe.
— Sim. Foi quarta-feira. Fiquei doente naturalmente porque não podia mais brincar...
— ?
— Pois claro! Desde sábado não dormia. Era só folia, folia e mais folia. Aconteceu-me o que aconteceria a um automóvel abandonado pelo chofer. Fui esbarrar, sem direção, na doença.
— ...
— Achas feliz a comparação? É minha, inteiramente minha. Os homens são automóveis governados pelo motorista Conveniência Social a 12 quilômetros a hora. De repente o Carnaval atira a Conveniência no chão, toma o guidão e toca a 120 a hora. Quando desaparece, com a velocidade adquirida, os automóveis vão por aí perdidos e, ou estraçalham-se ou precisam de conserto. Eu estou na garage.
— Se me diverti? Muito! Passava os dias na Avenida, nas batalhas de confete, nos apertões. Arranjei para mais de 40 namoradas. A brincadeira ia até meia-noite, com consecutivos uísques. Já experimentaste uísque com folhas de hortelã? Bebida muito americana. Eu fazia parte do “Bloco Topa-Tudo”.
— ...
— Ora, se topávamos! À meia-noite, ia mudar de roupa e entrava noutra zona...
— ...
— Qual Lapa, qual nada! Eram os clubes, os bailes carnavalescos. Não houve noite que não percorresse todos, um por um...
— ...
— Não. Eram todos iguais. Mas a questão é não perder um só. Amanhecemos sempre no Leme ou na Mère Louise bebendo cerveja. Não imaginas como não dormir dá falta de sono! A minha vontade era que a coisa continuasse. Tínhamos, porém, de ir a casa deitar um pouco. Ao meio-dia eu pelo menos já pensava na rua. Que pândega!
— ...
— Todas as noites, sim!
— ...
— Aborrecer-me? Bem se vê que estás a envelhecer! Dize-me cá, já se aborreceu o Rio de discutir o Irineu Machado, o Rui Barbosa, o ator Brandão? Nós levamos a fazer a mesma coisa anos e anos sem nos aborrecer. Como é possível aborrecer coisas que só fazemos três dias no ano?
— ...
— Depois perdemos a cabeça! Sabes que encontrei nos clubes da rua do Passeio a família do austero professor Clodomiro? Pois lá estavam todos, inclusive o Clodomiro! Passei-lhes um trote. Isto é, ia passar. Mas o Clodomiro convidou-me para beber champanhe, tão tranquilo que eu senti a inutilidade do trote.
— ...
— Exatamente. Estava como se estivesse na sua casa. De resto no Carnaval andamos todos em casa porque a cidade é uma vasta casa de orates.
— ...
— Quanto gastei? Eu digo. Vinha fazendo economias desde janeiro. Em princípios de fevereiro acertei numa centena dez tostões. Pelo sim, pelo não fiz um pequeno empréstimo no Banco dos Funcionários. Segunda-feira empenhei o alfinete e o meu anel de bacharel. Enfim, andei gastando uns dois contos. Estou encravado o resto do ano...
— ...
— Que ganhei? Não sejas idiota, pelo amor de Deus. Diverti-me, ouviste? Diverti-me, gritei, berrei, bebi, ri, corri, não dormi! Estraguei a saúde, estraguei a algibeira. Achas pouco? Se o Carnaval não existisse era preciso inventá-lo. Porque ao cair da cinza é que a gente vê o que o fogo da alegria foi de lucro só para os que não se divertem no Carnaval...