O jornal era atrasado de alguns dias. Mas vocês já repararam que as manchetes do mês passado servem perfeitamente para as manchetes do mês em curso? Basta mudar alguns dos nomes próprios, deslocar ligeiramente o eixo dos problemas. O resto, vindo do editorial e passando pelos sueltos até chegar aos anúncios das famílias americanas que se retiram do país, é tudo imutável; sendo que nas famílias americanas até o endereço é igual...

Na página dos cronistas um moço escritor, ao qual não faltam o talento e a graça, ocupava-se em demolir a chamada geração de 22, mostrando-se particularmente feroz contra o grande Mário, fabuloso irmão mais velho que a nossa geração tanto ouviu e amou. 

E dá na gente uma espécie de melancolia. Não por causa de Mário, propriamente, que ele era bom de briga e, mesmo depois de morto, não serão essas escaramuças capazes de lhe tirar substância. Antes se considere um sinal de força viva, porem-se a pelejar com ele os mais brilhantes da nova geração, depois de passados quase 20 anos que o meteram debaixo da terra. A melancolia está em se ver quanto é monótono o ciclo da vida, quer se trate do simplesmente biológico, como do político, como do literário ou artístico. Tudo se repete miudamente, não apenas as quatro estações. Feito a floração dos ipês — anos atrás de anos a mesma cor, o mesmo cheiro, a mesma curta vida. Ou as ressacas na Guanabara, os cardumes de sardinhas, o asfalto que se derrete aos calores do verão. Ano atrás de ano, ano atrás de ano.

Aquelas veemências, quem não as ouviu de voz ou não as viu de letra, geração após geração? Modernistas contra os Bilaques, naturalistas contra românticos, demolidores Josés de Alencares contra os gramáticos nos seus Castilhos, nativistas contra os árcades, e andando assim para trás em cadeia sem fim?

E, tal como os ataques dos jovens, repete-se também a reação dos superados, cuja veemência não é menor. Velhote nenhum consegue vencer direito a tendência para ficar danado contra a irreverência, cuíca o sacrilégio. E atire a primeira pedra o que, dentre nós, hoje em dia, for capaz de zombar como zombava outrora do maranhense Coelho Neto a bater no peito e a clamar da tribuna acadêmica que era o último heleno!

É em tudo; as gracinhas do meu neto são a reprodução taquigráfica das gracinhas do neto de meu avô; como o jumentinho que escaramuça no pátio não se distingue dos jumentinhos da nossa infância, bisavós dos atuais.

E na política, então. Que faz este presidente que os outros não tenham feito antes? O ministro que proíbe o rádio podia ser o mesmo que fechava jornais durante a Regência, os soldados inquietos de agora já se inquietavam assim no tempo do vice-rei.

O pior é que dentro embora do tédio da repetição, tem-se que decidir qual a atitude certa. Demitir-se, renunciar, ir bocejar de fora? Ou aceitar como coisa nova, urgente, inédita a fase do ciclo que nos cabe?

Como consolo, poderemos talvez imaginar que somos intérpretes sucessivos de um clássico que, por repetido, não perde a sua grandeza. O diálogo shakespeariano não desmerece porque o vêm decorando 40 gerações de comediantes. Ao contrário, se há 400 anos se representa o Hamlet, um Olivier de hoje em dia sente muito maior a sua responsabilidade: precisa superar aquela vasta linhagem de intérpretes que o precedeu a viver no palco as desventuras do príncipe da Dinamarca. A ancianidade da peça só lhe aumenta o prestígio, como pátina preciosa.

Assim, conclui-se que a nossa obrigação, afinal, será a de recitar cada um à sua ponta o melhor que possa, tentando pelo menos não lhe dar interpretação por demais pífia, que envergonhe os colegas do passado ou que rebaixe os padrões para o futuro.

Cada um no seu lugar, os moços fazendo força para derrubar os velhos do alto do coqueiro, os velhos se agarrando lá em cima o mais que possam; e, chegando a infalível hora da queda, procurando ao menos trazer consigo o seu coco.

Ruim é quando os papéis se confundem; quando os velhos inventam se mascarar de novos, e são os que fazem mais alarido e mais cutucam os que subiram; ou quando os moços se acoelham e se acomodam, pensando que toda hora é hora de tomar a benção. Diz a lei que, em terreiro de frango, galo velho só canta se tiver clarim tão forte que abafe o dos galos novos.

rachel-de-queiroz
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