Meus amigos partiram em viagem. Você vai partir amanhã. E eu já parti anteontem. Assim está o mundo. Bem, não está assim o mundo; quero dizer, os seres que o habitam sempre viajaram. Deus criador, em vista do seu projeto de começar tudo por um casal único, tinha que instilar no coração dos homens esse instinto ambulatório; quase tão poderoso quanto o instinto reprodutório; pois que ambos fazem parte do mesmo plano — aquele do “Crescei e multiplicai-vos”. Se vivêssemos em massa agarrados como cracas ao Jardim do Éden — já pensou que feroz convívio? Se, com a variedade infinita das diásporas, o Oriente Médio ainda pulula de gente, imagina só se todos os descendentes de Adão ainda estivessem por lá?

Os bilhões de seres humanos apertados entre o Mediterrâneo, o Tigre e o Eufrates, e o resto da terra vazio.... Os ecologistas iriam adorar, mas até eles se sentiriam um pouco incomodados em espaço tão restrito.

Então Deus Nosso Senhor, como já foi dito, instila no nosso coração o impulso ambulatório — “Toma o teu manto (isso depois de fazer com que nos envergonhássemos da nossa nudez) e o teu cajado, e parte para povoar o mundo. Não quero que fiques pregado ao chão, como uma árvore”. E, pensando em árvores, o Senhor lembrou-se de fazer com que pelo menos as suas sementes fossem entregues ao vento, que então as semeariam pelas terras além.

Viaja-se hoje, com mais frequência e menos sacrifício, mas, embora sem os confortos atuais, sempre se viajou e para incríveis distâncias. Chegava-se a viajar em massa, às centenas de milhares, talvez até milhão de indivíduos (vide a marcha de Moisés com o seu povo, 40 anos no deserto). Aquela múmia de cinco mil anos, encontrada recentemente, quase perfeita, no cume de uma geleira da Áustria, prova bem quanto se viajava. Até geleiras alpinas já escalavam os homens de milênios atrás.

A pé, de elefante, de camelo, a cavalo, em carro de guerra, em jangada, em veleiro, em trenó, o homem nunca parou na sua determinação ambulatória.

Minha avó Rachel me contava que lhe contava a sua avó como se faziam as viagens de antanho. Tendo ela própria nascido em 1852, as jornadas da avó mãe senhora (que morreu aos 99 anos e 9 meses, sempre se repetiu na família) datariam essas lembranças do pleno 1700.... Dada a incerteza da navegação, na época, as famílias evitavam os barcos (patachos, brigues, escunas, quanto nome lindo!) pequenos e inseguros. Jornadeavam então por terra, em grandes caravanas lerdas. Do Crato ou do Aquiraz à Corte, uma grande família em mudança poderia levar até seis meses. Mas no tempo em que minha avó me contava as suas recordações, já se levava de Fortaleza ao Rio apenas de oito a seis dias de vapor. Num Ita.

Agora, a bordo dos aviões de carreira, a gente reclama a demora de seis horas do percurso, por causa das escalas. Em viagem direta o tempo normal do voo é de três horas.

O mundo ficou tão pequeno que as pessoas realizam proezas dantes espantosas, sem se darem conta disso. Ano passado a minha irmã foi daqui pro Japão. Depois pra Tailândia, depois pra Paris, depois voltou ao Rio; e nem tinha pensado que estava dando a volta ao mundo! Cinquenta anos atrás teria que escrever um livro, para registrar as aventuras das suas experiências no antípoda.

Foi pena que a viagem do homem à Lua se revelasse tão decepcionante. Não só não existem selenitas como não existe mais nada, além do pó branco, naquele desolado satélite. E essa frustração deu um paradeiro à corrida espacial, que já parecia em pleno impulso. Mas recomeçará. Todos temos certeza de que recomeçará. Até que um dia chegue o fim do mundo, a Terra interrompa a sua aparentemente eterna viagem ao redor do Sol e vá embora numa explosão.

E assim mesmo continuaremos rodando por aí, transformados em poeira cósmica, o que não deixará de ser uma maneira extremamente sutil de viajar.

rachel-de-queiroz
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