Todo nordestino fica danado da vida quando pessoas a que ele dá importância vêm conhecer a sua terra nos meses de verão. Não é que ele não goste do verão. O verão, para o nativo, é tempo muito agradável, sem chuvas nem atoleiros, o campo aberto multiplicado em caminhos, o leito dos maiores rios vadeáveis a pé enxuto, convidando ao nomadismo que ainda está tão perto de nós, já que nós mesmos ainda estamos tão perto do índio andejo.

E no verão não há moscas, nem mosquitos, nem mutucas, nem muriçocas, nem friagem, nem frieiras, nem dor d’olhos, nem papocas roxas, nem defluxos, nem reumatismo.

Nem trabalho. Porque em pleno verão, acabada a colheita do feijão e do algodão, virado o milho; quando ainda não se começaram os remontes de cercas, a broca e a coivara dos roçados novos, há um período intermediário em que, literalmente, não se faz nada. Lá alguma desmancha de farinha, que é mais uma festa que um serviço. Ou moagem, nas raras fazendas onde há sítio de cana. O mais são os sambas, as cantorias, as viagens de recreio, o passar uns dias em casa de parentes distantes, as romarias em pagamento de promessas a Canindé ou ao Juazeiro. As novenas, os festejos dos santos, com barraquinha, leilão e foguete. E sanfona muita.

Mas tudo isso em família, não para estranho ver. Estranho chega e logo vai estranhando, como é natural. Aos olhos deles o sertão está horrível, seco, cinzento, sem folha verde à vista, a catinga virada numa floresta de garranchos. O gado fica magreirão, é claro, pois só come capim seco e o resto da palha do legume nas capoeiras. Os açudes baixam, os rios deixam de correr, as águas não são tão cristalinas, muita gente se abastece nas grosseiras cacimbas que são apenas grandes buracos rústicos cavados na areia, sem paredes de alvenaria ou quaisquer obras de arte. Tudo improvisado e perecível — tudo provisório, como o próprio verão.

Provisório. É essa a palavra que os estranhos não entendem. Que a secura, a falta do verde, as águas baixas, tudo é provisório e salutar.

Eu por mim confesso que tinha o maior acanhamento em mostrar o sertão na quadra seca ao pessoal de Bahia pra baixo. Só depois que conheci a nudez de outono e inverno em outras latitudes foi que perdi a cerimônia. Esse negócio de mata tropical, permanentemente verde e úmida, é coisa de subdesenvolvido, que não conhece as alternativas das estações; para eles é sempre uma coisa só. Mas nas terras civilizadas da Europa e Norte-América, o ritmo é semelhante ao nosso, no Nordeste. Folha nasce e folha cai no tempo certo e ninguém na Alemanha ou na Escócia se lembraria de ter vergonha de mostrar aos de fora a nudez das árvores ou a grama queimada e morta. Aliás, foi só isso que vi nos famosos campos da Inglaterra — os relvados secos, o arvoredo nu. Era fim de outono. Também no Vermont, nos Estados Unidos, em novembro, meu Deus, não fosse o testemunho das estrelas no céu, tão diversas, e o povo todo falando inglês, e a comida inconfundível, a gente podia jurar que aquele novembro era em pleno sertão do Quixeramobim. O chão cinzento, a mata rala desfolhada, os bichos comendo capim seco, as águas escassas depois dos calores do verão. A terra como adormecida, esperando o despertar para desabrochar. Tal e qual como nós. A única diferença era a espera da neve e do frio — e nisso nós levamos vantagem, pois ninguém pode comparar o conforto da ventilação marinha que nos banha a terra toda, o sol claríssimo, os lindos luares, as noites frescas, as madrugadas esplendorosas, com o frio e a umidade e a neve nos telhados e o gelo no chão, e tudo trancafiado a tiritar, procurando aquecimento.

Mas vem aqui algum carioca, ou paulista, ou goiano, na quadra estival, para nós tão propícia e logo exclama: — Que horror! Como se pode viver assim? Coitada dessa gente! Cadê os retirantes?

Não sabem que retirante é assunto de seca, e verão não é seca. Não sabem que é por causa do verão que nós praticamente não conhecemos moléstias, não sabemos o que é impaludismo, bouba, mal-de-chagas, febre amarela, aqui não dá berne no gado e, se aparece alguma aftosa ou raiva, é sempre trazida de longe.

Mas não adianta explicar, que eles não entendem. Veem um rio seco, não pensam que é uma ocorrência sazonal, regular, se espantam, acham que houve calamidade. O rio secou!

Não sabem que nos calores do verão a terra dorme e os homens folgam. Pra depois rebentarem em flor e fruto, com as águas novas.

rachel-de-queiroz
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