Fonte:  Crônicas inéditas. Organização e apresentação de Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho.  São Paulo, Companhia das Letras, 2022, pp. 105-106. Publicada, originalmente, na revista Diretrizes, de 6/07/1945.

Outro dia eu estive pensando uma coisa: que esta crônica, muito mais que ser minha, é da cidade. Senti-me então meio raso, e pela primeira vez tive a noção exata da responsabilidade que ela implica. Puxa, afinal de contas é ligeiramente abafante ser escolhido como o intérprete da cidade múltipla, o anotador vigilante das suas grandezas e misérias, o poeta do seu lirismo, o criptógrafo das suas mensagens de um instante. E esse pensamento, com me achatar um pouco, me trouxe uma porção de ideias novas, acabando por bater asas e fugir de mim. Num largo passeio aéreo sobre a extensão urbana. Vi de cima dos footings noturnos de Cascadura e do Méier, de cinemas feericamente iluminados: vi Encantado, onde morei um mês e onde nasceu Nelly. Uma que amei. Vi o bondinho da Ilha do Governador cortando como uma lagarta fosforescente os longos hiatos entre Zumbi, Cocotá e Freguesia. Vi São Cristóvão e Rio Comprido com suas ruas tão cariocas, tão pungentes, e depois Vila Isabel, uma cidade independente, onde nasceu o maior poeta da cidade, o inesquecível Noel Rosa. Vi o Grajaú, onde dá bamba pra chuchu, e onde os trabalhadores das fábricas sofrem. Vi tanta coisa e inclusive o Mangue, logradouro fatal de mulheres, e as grandes praças de jardins tão lindos, e a rua Larga, a Saúde, pátria de valentes, a avenida, o Castelo, a Cinelândia e o esplendor da Zona Sul. Vi milhões. Vi a poesia de tudo antes de ver a massa humana se agitando, lutando, se alegrando, penando, dentro das casas acesas e nas ruas noturnas.

Senti que era dever meu zelar por esse patrimônio de poesia que é a cidade, e me perturbou o me sentir tão pobre para um tal cuidado. É fato: às vezes um homem se sente burro e sem vontade de escrever. Pode não ser jornalista, dizê-lo, mas pouco me importa, é a verdade. Às vezes um homem tem vontade apenas de ficar calado, perfeitamente calado, a perna cruzada imóvel. Por isso haverá dias em que o cronista não o será da cidade, mas é preciso saber perdoá-lo. Nesses dias talvez a cidade esteja menos nele que ele na cidade, sentindo do modo total a sua pequeneza, que é grande.

Foi por isso que eu pensei uma coisa: o cronista não deve ser apenas o que cria a crônica: ele deve ser também, pois que a crônica é da cidade, o que faz, eventualmente, a crônica que outro não fez, ou por não saber fazê-la, ou por não ser cronista, ou por não querer, simplesmente. De modo que eu queria pedir uma coisa à cidade: quem tiver a sua crônica, que me diga. Não constitui isso nenhuma vergonha nem para mim, nem para ninguém, pelo contrário, será uma grande honra dar forma literária à ideia, à reivindicação, ao protesto, à bossa do habitante anônimo desde que — e ele me permitirá ser juiz em tal matéria — eu a julgue substancialmente dentro do espírito desse retângulo, que é um pouco do espírito deste jornal.

Podem mandar: boas ideias, boas campanhas, novidades, esquisitices, manias dessa cidade nossa amada. Podem mandar: duas linhas pelo correio ou pelo telefone mesmo. Se eu não estiver é só dizer: “Peça ao Vinicius para escrever sobre...”. E eu julgarei da ideia e, seja ela boa, começarei assim: “Hoje o senhor fulano de tal me pediu...”. Ou, melhor ainda: “O cronista anônimo da cidade hoje me telefonou...”.

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