Fonte: Crônicas inéditas. Organização e apresentação de Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho. São Paulo, Companhia das Letras, 2022, pp. 113-114. Publicada, originalmente, na revista Diretrizes, de 16/07/1945.
Sugere-me o leitor Próspero Calvo, em carta de 7 deste, uma crônica sobre a necessidade de ser adotada uma linguagem com que o freguês se faça entender pelos barbeiros. Diz ele para começo de conversa: “ninguém consegue explicar como quer o cabelo a esses cortes profissionais...”.
A tese do sr. Calvo é a seguinte: que sua experiência é confirmada pela de vários amigos seus: o remédio está em não se mudar de barbeiro “quando já se encontrou um que acertou a mão”; mas como costumam eles trocar constantemente de barbearia, saindo em geral brigados, o patrão não informa, de espírito de porco, para onde foram, e precisa-se então recomeçar tudo de novo.
O sr. Calvo parece realmente desesperado. Escutem só: “Mesmo quando se tem barbeiro certo, corremos o risco, por timidez, de cair nas mãos de um monstro. É que ao entrarmos na loja, os barbeiros têm o hábito de se perfilarem, cada um na sua cadeira, num convite constrangedor. Com medo de sermos grosseiros, sentamo-nos na primeira (critério impessoal de escolha) e passamos um amargo quarto de hora com explicações minuciosas e inúteis. E tudo isso porque as palavras e expressões usadas nos salões têm significado diferente para cada barbeiro. A dois deles já pedi que me 'aparassem o cabelo': o primeiro cortou só em volta das orelhas e o outro quase me raspou o crânio. 'Conservar o corte' é para uns cortar o cabelo 'no mesmo estilo' é para outros tirar somente umas pontinhas e deixar a juba na mesa". “Disfarçado”, continua o nosso amigo Calvo, tanto significa fazer o cabelo morrer suavemente no pescoço como pelar a nuca. “Abaixar um pouco” quer dizer ao mesmo tempo tirar nas pontas e tirar por dentro (“desfiar”). O resultado, conclui ele, é que a gente sai enfezado e demora a voltar, deixando o cabelo montar no colarinho e nas orelhas. O que é pior. A gente se livra da incompreensão do barbeiro, mas ouve as reclamações da mulher da manhã à noite.
Como todos veem, o sr. Calvo é o verdadeiro cronista desta crônica de hoje. E muito bom. Se me permito divergir em dois ou três pontos, é para ver justamente se conseguimos encontrar uma linha comum e útil, que não só o livre das suas inibições, como me dê a impressão de que eu não sou o mais feliz dos mortais, pois que tais coisas nunca me aconteceram. É verdade que encontrei um barbeiro que é uma pérola viva, que conversa comigo o essencial, me telefona sempre que muda de salão ou quando eu faço cera para ir cortar o cabelo, e que inclusive já me tem emprestado dinheiro em alguma emergência, dessas que acontecem para todo mundo! Eu tenho a impressão de que o sr. Calvo peca por timidez com relação a barbeiros. Barbeiros são seres delicadíssimos e muito bem barbeados e penteados, de modo que têm de saída sobre o freguês a vantagem de estarem bem-postos e o freguês não, que lá vai para arrumar a fachada. De modo que é necessário um desembaraço positivo no freguês, que não dê tempo ao barbeiro de se prevalecer do seu natural complexo de superioridade. O freguês deve chegar, escolher seu barbeiro com uma certa displicência (porque está sendo alvo dos olhares de toda a barbearia) e ditar suas ordens cortesmente, mas de modo batata, olhando o barbeiro nos olhos. Sim, porque uma barbearia é uma verdadeira escola para curar os tímidos. O indivíduo que trasteja vira amolador de navalha, não só dos barbeiros como dos fregueses usuais, em sua maioria extrovertidos, contadores de vantagem e grandes pilantras da cidade.
Eis o meu conselho ao sr. Calvo, ele que experimente e depois me diga. Voltarei novamente a tratar dessa excelente classe. Por hoje, muito obrigado pela confiança no cronista e pela ótima colaboração na crônica.