Há uma noite em que obscuras disposições interiores nos levam a apagar as lâmpadas de casa para viver um pouco na escuridão. Clamava na vitrola a clarineta negra de Bechet. Foi em uma noite assim, rondando pelo meu apartamento, que descobri um jorro de luz pálida, a espaços iguais de tempo, iluminando o Cristo de Chagall na parede da sala. Era a ilha distante que me transmitia o seu testemunho, era um mundo a sofrer em busca de unidade, a ilha, um farol, um faroleiro, os negros investigando uma linguagem musical para a desolação, era o Cristo de um judeu russo a sangrar sobre as isbas turvas de uma aldeia, era uma rosa plástica na treva, eram as estrelas rutilantes, o vento fluindo, era a luz de intensidade enfraquecida vindo morrer onde moro, as vagas rugindo na ressaca, as traineiras ofegantes discorrendo, era eu, encruzilhada de trocadilhos sentimentais, tímido depositário de tantos recados. “Pulvis et umbra sumus”.
Mas passei desde então a olhar a ilha Rasa com intimidade, a procurar sobre o oceano os pensamentos do faroleiro, habituei-me a desligar as lâmpadas e abrir a janela, para que se repetisse nas noites sem nevoeiro aquele vago murmúrio de luz em meu apartamento. Um farol e um homem na escuridão. Sinais obscuros de um mundo obscuro, dois frêmitos que se esvaíam e retornavam, duas letras herméticas na compacta futilidade urbana. E da minha opacidade triste, diante da mensagem inarticulada de um facho luminoso, nasceu o meu amor pela ilha. Outrora, eu a contemplava de outro ângulo e de outras ansiedades, embriagando-me devagarinho pelos bares da orla marítima. Hoje, duas certezas lúcidas que se defrontam.
Pouco falta para que se construa no prédio à esquerda de minha janela a sétima laje. Feito isso, não verei mais a ilha, a sua palpitação de luz irá chocar-se de encontro à parede que me barra, naquela direção, a vista do oceano. Nunca mais. E é por esse motivo que, no dia de hoje, um pressentimento de morte me torna impraticável às ideias coletivas do jornalismo. Adeus.