Ontem, numa roda de amigos, discutia-se jornalismo e jornalistas, quando de repente alguém suscitou a pergunta inevitável: qual o mais completo jornalista brasileiro, entre os atuantes? E a resposta veio numa curiosa unanimidade, tratando-se de um grupo de gente tão opinativa e aferrada aos seus parcialismos intelectuais: Odylo Costa, filho. Haverá outros, grandes articulistas; haverá outros, fabulosos repórteres; haverá grandes organizadores, campeões de vendagens, gênios de manchete. Mas algum que reúna em si o complexo dessas qualidades todas, em alto nível; sendo um homem de cultura e de bom gosto, ter aquele seguro instinto do que deseja o leitor médio de jornal; sendo indiscutivelmente uma pessoa da intelligenzia, saber fazer um jornal que satisfaça a todos os gostos de público — ele é esse.

Como articulista, possui o talento específico de transformar o fato cotidiano em assunto jornalístico, de fazer da controvérsia uma arte e do debate uma ciência, de esgotar qualquer tema sem cair nos dois escolhos antípodas que ameaçam o colunista: ou dar a impressão de superficialidade e de improviso, ou cair no pecado oposto — a estreiteza especializada. É um sentido, um conhecimento do mundo que lhe permite esse abord geral — a proficiência sem pedantismo, a visão de conjunto sem desprezo do detalhe ou da profundidade, sem se restringir a amenidades e a anotações panorâmicas.

Vem em seguida o repórter: é seu aquele faro singular que colhe a boa notícia no ar, antes dos outros, que sabe destilar do boato a informação autêntica, que desencava o fato vivo no chão onde se oculta, que na meia palavra de um prócer pega o segredo das intrigas mais enredadas, e através das suas preciosas ligações e contatos tem acesso às fontes de informações mais inacessíveis. Ah, é um prazer raro, ver em ação mestre Odylo, a peneirar boatos, telegramas, telefonemas misteriosos, informações de pé de ouvido, antecipações de discursos, declarações de cartolas — e tirar desse amálgama incoerente e heterogêneo o fino, a flor, em matéria jornalística. Só posso comparar com ver Pelé brincar com a bola e chutar em gol!

E a isso tudo ainda soma ele a qualidade maior de todas para o profissional: feita de imaginação, de boa técnica, de sentido plástico — quase diria pictórico — de ousadia, de adivinhação, de senso de oportunidade, de antecipação do que será a reação do público leitor: é o que se chama propriamente “saber fazer” um jornal.

Com o mesmo tipo, com o mesmo papel, com o mesmo pessoal, com as mesmas fontes de notícias dos outros, valorizar o fato jornalístico, a matéria impressa, a informação e o comentário. Vender jornal sem manchetes de escândalo; atrair o leitor sem carecer de berrar na primeira página que a beldade estripou o amante que a explorava. Fazer jornalismo em nível alto, sem cair no sensaboração ou no pesado — que é o que se costuma entender por “elevado”. Arte extremamente sutil graças à qual pode o jornalista farejar a foto sensacional num monte de chapas aparentemente inexpressivas, prevendo com exatidão as associações que sugere ou as reações que suscita. Ser vibrante sem ser demagógico, veraz sem brutalidade, contundente sem perseguição, bem informado sem ser boateiro, sensacional sem ser escandaloso.

Pois nisso tudo é catedrático mestre Odylo. Dentro dessa linha tem ele realizado as suas mais notáveis proezas; como por exemplo transformar da noite para o dia uma velha folha decadente no mais vibrante e no mais bem apresentado dos seus congêneres. A ponto que uma de suas “criaturas” mais recentes poderia muito bem abandonar o velho nome tradicional e crismar-se em Fênix do Brasil, pois foi em fênix que a transformou Odylo: ressuscitou-a das cinzas. E completando o seu knack para apresentar um jornal bem informado e atraente, some-se um dom nato de liderança, a arte de fazer com que os seus colaboradores lhe deem tudo de que são capazes; um instinto seguro de convívio, reunindo na mesma página gente velha e gente moça, estreantes e laureados, dando a todos oportunidade e provocação pois ninguém mais do que ele sabe mostrar reverência por um patriarca, ou inteligente interesse por um principiante. O seu slogan a esse respeito é característico: “Só exijo que seja bom”.

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Mas parece que esse tipo de jornalista exemplar, do qual Odylo é um padrão, está fadado a entrar em conflito com outro tipo de profissional que se vem introduzindo no Brasil por força do dinheiro das grandes empresas e do ambiente de feroz competição interna que reina entre os homens a serviço dessas grandes organizações. Não é a competição tradicional, no bom sentido, e que sempre vigorou nos nossos “associados”, permitindo que vença o melhor e o mais dotado; é uma luta miúda e difícil, que já conhecemos de sobra através do cinema e da literatura, que o ambiente hollywoodiano tão bem tipifica; e cujo exemplo anedótico mais divertido é aquele dos dois vice-presidentes de uma poderosa organização que se engalfinham em luta de morte pela posse do banheiro de luxo, no escritório. É que o banheiro vale como símbolo de poderio e de sucesso, e então por amor dele se mata, se trafica e se morre.

Será essa face nova o futuro do jornalismo? Para nós, velhos profissionais, a pergunta é melancólica e ameaçadora. Ao talento, ao amor do ofício, à paixão de uma tarefa bem feita, teremos que substituir as astúcias e intrigas dos executivos espertos, escolhidos não pelo equilíbrio dos seus dons, mas por seus dons de equilibristas; não por saberem fazer um jornal, mas por se saberem fazer, dentro dos jornais?

Afinal, a gente precisa de se lembrar que, havendo embora a indústria jornalística, jornal não pode ser uma produção em massa, como pneumáticos ou sacara de estopa. Pois em verdade, em verdade, imprimir jornal ainda está bem longe de simplesmente imprimir catálogos. 

rachel-de-queiroz
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