Afinal tive outro dia a oportunidade de ver Pelé, não apenas na tela da TV, envergando a famosa camisa dez, não ao sol do campo ou sob os holofotes do Maracanã; fui apresentada ao Rei no território amigo da nossa José Olímpio, apertei-lhe a mão, dissemos algumas palavras que consistiram principalmente em troca de congratulações pela nossa recíproca condição de vascaínos; depois, durante cerca de meia hora, fiquei a vê-lo evoluir entre admiradores e fãs de todas as faixas etárias e estados sociais, que iam de um ministro aos garotos mensageiros da casa, passando por escritores, jornalistas, editores e banqueiros.

E a experiência me reafirmou na convicção de que Deus sabe a quem dá grandeza e aquele moço tem grandeza. A tal grandeza interior que independe bastante das conquistas temporais, que nasce com a pessoa e se reafirma com os seus êxitos.

A simplicidade fácil com que acolhe as homenagens, decerto tem sido ajudada pela prática dos longos anos de carreira triunfal. Mas a ausência de máscara, a gentileza tranquila, a falta do menor vestígio de arrogância fazem desse ídolo esportivo realmente uma pessoa humana excepcional.

É curioso como ele consegue ser impecável em tudo — e sem afetação — como eles gostam de dizer agora: descontraído. Na roupa que em sendo embora o fino da moda, não tem qualquer nota prafrentex ou excêntrica — o terno azul “oficial” dos homens de negócio, a clássica discreta gravata, a clássica camisa branca. O timbre da voz, o jeito de escutar ou falar, o aperto de mão — tudo é dentro da medida ideal — e até mesmo as manobras precisas (parece até que ele está em campo!) para se libertar da marcação cerrada de fãs que o cercam e tentam afogá-lo.

É evidente que não foram só os miraculosos feitos esportivos que deram a Pelé a sua extraordinária popularidade dentro e fora do país. Se ainda não tivemos jogadores com fé de ofício igual à dele, tivemos outros que andaram perto das suas qualidades de atleta e, contudo, jamais assumiram, proporcionalmente, a importância social por Pelé assumida. Porque o fato é que grande parte do domínio da bola e do campo, que faz de Pelé o espantoso jogador que é ele, se deve tanto à sua cabeça quanto às suas pernas ou ao seu fôlego, tanto às células cinzentas, ao miolo, quanto aos músculos e aos nervos.

Quem quer que o veja de perto, sente que está ali um líder nato. É pena que a vida devoradora do atleta lhe tenha absorvido tão completamente o tempo, tirando-o do currículo regular de estudos dos moços da sua idade. Se Pelé tivesse podido fazer os cursos necessários, não vejo nada a que ele não pudesse aspirar. Diz ele agora que, completando os 30 anos, chegou o tempo de abandonar a seleção e libertar-se daquela disciplina estrita de compromissos esportivos, pior que de mosteiro ou de quartel. Então terá o cidadão Edson Arantes tempo para completar os seus estudos, para os quais já se credenciou com um vestibular. E superado o fosso dos estudos, que o menino jogador não pôde fazer, porque, enquanto os outros frequentavam a faculdade, ele na Europa já nos fazia conquistar a Copa do Mundo, não dou por menos: — pode-se ver Pelé deputado, senador, ministro, embaixador, sei lá, todas as grandezas democráticas a que o bom cidadão brasileiro pode aspirar, no serviço do seu país. O perigo é que o muito dinheiro ganho no futebol desvie Pelé para a área dos negócios e ele acabe um capitão de indústria ou homem de finanças, atividades que de certa forma já o estão atraindo. E é pena, porque os seus dons espontâneos — aquela espécie de autoridade inata — que o leva à liderança dos homens, seria uma força imbatível na política.

A torcida entusiástica do mundo inteiro pôs na cabeça de Pelé a coroa de Rei. Quanto tempo durará esse reinado, ninguém sabe, porque o futebol é uma máquina devoradora e o próprio Pelé, aos 30 anos, já se declara “velho”. Porém, mesmo depois que passar o seu reinado, quando outros reis do futebol o sucederem, Pelé, como os que nascem com sangue azul, perderá a coroa, mas não perderá a fidalguia. Príncipe ele não é porque o fizeram: príncipe ele é porque príncipe nasceu.

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