A gentileza em pessoa? Mas dizer gentileza é dizer pouco ou errado. Raspando-se a casca do gentil, aparece muitas vezes o osso da indiferença. As pessoas mostram-se afáveis para se livrarem mais facilmente umas das outras. Posição de defesa, apenas; no fundo, um enorme pouco-estou-te-ligando. No caso de Tatá, homem gentil, se alguém o escalpelasse, encontraria matéria muito diversa: bondade. No duro.
Todo mundo sabia desse recheio especial, e todo mundo se beneficiava dele, na comunidade de artistas, escritores, funcionários. Chego a admitir que o explorávamos. Tatá ficou sendo instituição de utilidade pública, sem diploma nem decreto do Ministério da Justiça: pelo consenso dos colegas.
– Tatá, faz isso pra mim.
– Tatá, me quebra esse galho.
– Tatá, e isso? E aquilo? Como é que vai ser, Tatá?
Tatá, afabilíssimo, providenciava. Abraçando a um e a outro, com uma palavra-ternura, interessando-se pelo problema de cada um, contando coisas: sabia muitas coisas sobre cada coisa, em seu mundo. No fim, já não era preciso pedir-lhe nada. Ele adivinhava, ou por outra: lembrava-se por nós daquilo que a gente deveria lembrar e esquecia. Como é fácil esquecer quando se tem alguém que lembra por nós. O telefone tocava à noite. Era Tatá: Querido, estou saindo do serviço e vi que você não assinou o ponto. Tome um táxi, venha assinar depressa. Não perca seu dia de trabalho.
Muitas tarefas pesavam sobre seus ombros magros e ainda cuidava das alheias. Se um companheiro faltava com a obrigação, ele dava um jeito de a obrigação ser cumprida: tão amigo do pessoal como do serviço.
Tatá em férias, visitando o norte de seus encantos, a gente ficava meio sem bússola, no marzinho em que navegávamos. No jantar de confraternização de fim de ano, era ele entrar na churrascaria e aproximar-se da mesa, estrondava, espontânea, uma salva de palmas, todos querendo sentar-se a seu lado – único problema que Tatá não seria capaz de resolver… Mas talvez houvesse outro: pois esse homem bom sofria ao verificar a existência da maldade. Isso lhe parecia absurdo, antinatural. Talvez um cochilo de Deus. Mas Deus não devia cochilar!
Eis que, terça-feira, Tatá não comparece ao trabalho. E não avisou. Ele, o pontual, o que se desdobrava para servir e remediar a falta dos outros. Como é que pode? Quarta-feira, também não. O pessoal, inquieto, corre à procura de Tatá. Em seu pequeno apartamento de solteiro, o cãozinho late aflito. Tatá não está lá dentro. Vão encontrá-lo no Instituto Médico Legal – corpo esmagado por um desses assassinos de rodas, que andam por aí exterminando pedestres inocentes. A morte que Tatá menos merecia, e que o pegou de noite, voltando do trabalho.
Na capela de São Francisco da Penitência, no Caju, era uma família reunida, a enorme família que Tatá se fizera, sendo simples e sendo bom. Quantos importantes desta hora terão um velório como o seu, em que todos estavam ali por sentimento real e muitos choravam? Quando Ziraldo inventou Jeremias, o bom, mal podia imaginar que seu tipo existia no cotidiano do Rio, e que seu exato nome era Tatá – ou, no fichário, Otacílio Cruz, controlador geral da programação da Rádio Ministério da Educação e Cultura.