28 out 1961

Um homenzinho na ventania (2)

Periódico
Manchete, nº 497
Publicada também em: livro Homenzinho na ventania, de 1962.

O homenzinho apanhou o vidro e reiniciou a viagem de volta, arrastando-se. Vibrava a amendoeira na torrente aérea. Através da lente sentiu o alívio de ver o mundo retornar a uma relativa nitidez. Mas a porta da boate se abriu e o leão de chácara apareceu, inspecionando a tormenta. Quando deparou com a figura suja e descomposta, um braço argolado à árvore, cara contraída, a mão segurando um vidro perto do olho, o ciclope foi tomado de animada fúria de riso, convocando os garçons ao espetáculo. Sem palavras, com um gesto pobre mas inteligível, o homenzinho pediu permissão para entrar. Aí está mais fresco, gritaram-lhe. Então um pouquinho d'água, balbuciou. "Just a moment, sir", respondeu-lhe o maître, curvando-se. O homenzinho começou a arrastar-se até a porta. O maître atirou-lhe em cima um balde de água suja. O rapaz mais excitado com o bom humor do chefe ainda perguntou: "Melhorou a sede?". Cambadas disso assim assim, respondeu o homenzinho. O garçom apanhou um pano encharcado e lhe enrolou o trapo imundo na cara.

Os homens bateram a porta. Livrando-se do panejamento, pensava em nada o homenzinho. Fadiga, embriaguez, vento colérico, impotência, enjoo de estômago, mal-estar profundíssimo, insegurança total reduziram-no a uma coisa miserável, que respirava. Depois, chiando e gemendo, retornou à árvore, como uma lesma maltratada.

Sujo, aviltado, sem dinheiro, não teve coragem de chamar o táxi, tresmalhado, que passava. Chamar, chamou, mas com um ganido débil de quem não espera ser atendido.

Um balaio de taquara repicou pela rua como um dançarino de balé burlesco. Atrás revolteava-se um caixote. Teve uma ideia. Segurando o caixote aos trancos, firmou-o contra a árvore, sentou-se no vão, todo encolhido, de costas para o vento. Já era alguma proteção, não o suficiente para acender um cigarro. Melhor, consolou-se, o fumo iria piorar-lhe a dor de cabeça.

A sede e a asma o consumiam. Um jornal veio bater-lhe às mãos. Através da lente, viu que se tratava duma folha do segundo caderno do Correio da Manhã de 22 de agosto de… 1950. A data o imbecilizou um minuto, mas, com esforço mental, foi-se convencendo de que nada havia de extraordinário no fato de chegar até ele, na ventania desvairada, um jornal de mais de dez anos passados. "Fracasso absoluto do Flamengo." Perdera de seis a zero para o Bangu. Biguá e Juvenal. Garcia no gol. A derrota não o magoava mais, no entanto, a lembrança em si (o impossível do tempo) bordou no drama do homenzinho umas estampas patéticas de que não seria capaz em outra circunstância. Ele penetrava naquele instante o reino dos mortos: a dor moral, incomparável, colocava um bálsamo em suas feridas, as físicas e as nascidas da vaidade.

Na página oposta. Seu signo era Virgem: "Alguns ajustes se impõem se você quer continuar a progredir. Pouco menos de independência, mas maior segurança. Se sonha com o casamento, não hesite. Se já é casado, reserve-se a surpresa de porte. Se tiver projetos de viagem, não perca tempo".

Recortava o horóscopo com o dedo, quando viu uma forma parda junto da parede. Uma caderneta de endereços? Uma carteira de notas? Esquecendo a prudência, ergueu-se do abrigo e atravessou, cambaleando, a curta distância que o separava do objeto, precipitando-se sobre o mesmo como fazem os goleiros, quando a bola, ainda viva, fica a carambolar dentro da área.

Era uma carteira. Talvez contivesse a quantia suficiente para um táxi até a Glória. Preparava-se para rastejar até a base, quando o caixote desembestou-se pela rua, caindo no mar grosso.

Sentado sob a árvore, trêmulo, suando frio, abriu a carteira: as notas de mil cruzeiros eram numerosas. Seu estado era por demais desarrumado para a visita do anjo da alegria, mas a visão do dinheiro, enérgica em si, veio deixá-lo mais bêbedo, mais perturbado, fazendo ressurgir em sua mente a turbulência da noitada. Levantando-se, começou a gritar os melhores palavrões para a porta da boate, dizendo que ia pagar sua dívida, que não ficava devendo nada a isso assim assim nenhum. O vento atingira o auge do acesso; o homenzinho também. Mas ele ia fazer um gesto irrecorrível: puxou as notas todas, mais de dez, formando um leque. Fatal: o vento arrancou-lhe tudo de um só golpe. O homenzinho começou a rir, um riso sem graça, sem nada, sincero e duro, e pesadamente sentou-se. Estalava-lhe a cabeça, chiava-lhe o peito, doía-lhe o corpo. Vomitou bile amarga. A cruel convulsão o fazia gemer: "Ai, meu Deus! ai, meu Deus!".

Mas um homenzinho não chora, enrola-se no chão e espera a morte. Pelo menos, sente a esperança de desaparecer.

Descalça, em farrapos, suja com a sujeira, rindo-se, o saco de linhagem nas costas, para a colheita farta do papel, apareceu a mendiga. Dando com o homenzinho, ficou séria. Ele também sério, procurando descobrir por arte de que prodígio a mulher conseguia caminhar no furacão. Perdendo um pouco o equilíbrio, a mendiga riu-se de novo, prendendo o sorriso sem dentes durante algum tempo, na eterna expectativa da reciprocidade de todos os gestos do coração. Mas o homenzinho ficou opaco como um homem de pedra no jardim. Cônscio de seu papel superior do homenzinho letra K, desistiu da ideia de pedir à pobre coitada que lhe fizesse a fineza de dar um recado ao vizinho que tinha telefone. Aquela mulher não atingira o telefone, o ventarrão des- fraldava-lhe a saia. A calça dela era azul, esburacada e imunda, mas azul. Eu, hein, riu-se a mulher, colocando o saco no chão; eta vento sem-vergonha! Na verdade, o olhar canino do homenzinho é que a envergonhava, sem saber mais se ia ou ficava. "Nossa Mãe do Céu, parece até o fim do mundo!" Virando-se bruscamente: "Qué?". O homenzinho não viu nada, mas a mão da mendiga trouxe de um lugar oculto nas dobras da saia encardida um pão pequeno, um pão bonito e puro.

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