Periódico
Jornal do Brasil
Caderno B. Publicada também em: livro Transumanas, de 1977.

O calendário não pegou no Rio. O ano efetivo carioca tem a duração de nove meses. É o máximo de tempo-responsável que a nossa tribo suporta. Depois de nove meses de gestação, as cucas de nossos tamoios perdem a consistência, sofrem contrações e dão à luz uma cuíca, ninguém segura a barriga do Rio quando acaba novembro. 

Trata-se duma hiperinflação de gratuidades.

Dezembro é fogo e é nesse fogo que os guanabarinos esquecem a produtividade, o compromisso, a carestia, dando férias geral à alma acorrentada. É no fogo de dezembro que o nosso clã desamarra o burro aristotélico e vai brincar nas pastagens da fantasia. O carioca só é de fato carioca durante três meses; no resto do ano é um cidadão mais ou menos cônscio dos seus deveres, quase um paulista.

Dezembro é o mais adolescente dos meses: sem juízo, turbulento, transpirando pansexualismo. Gasta-se em dezembro o dinheiro que não se tem e a saúde que se economizou. Assim sendo, quando janeiro já está engrenado, corre um desejo forte de se descansar das farras de fim de ano, uma necessidade de não se fazer nada. Sejamos sutis: em dezembro a alma carioca entra em férias, mas férias ativas, agitadas, divertidas; janeiro é o descanso do descanso. Nada acontece então na paisagem espiritual do carioca, nenhum desejo, nenhuma inclinação para o bem ou para o mal, a sensação biológica de que a vida flui e faz um calor danado. 

Quando janeiro já vai estrebuchando, o carioca leva um susto. O mesmo susto que me esfriava todo, quando mamãe, de repente, como se me detestasse, começava a falar que já estava em tempo de providenciar uniformes novos para o colégio. Quando vejo um jovem reclamar contra os aborrecimentos da vida de estudante, costumo dizer-lhe que há uma única vantagem em envelhecer: não ir ao colégio, não se ter de fazer e decorar verbos irregulares.

O carioca no finzinho de janeiro sente exatamente que as férias vão terminar, é preciso arrumar uniforme novo, enfrentar os professores e os horários ditatoriais. Aí, dá uma louca no Rio.

Fevereiro é um mês torto e adoidado. Não se encaixa no compasso anual. Falo de experiência profunda, pois tive a predestinação de vir ao mundo no último dia de fevereiro, nadando sem direção, e sei muito bem o quanto signo de peixes implica em incongruências e instabilidade. 

Há certo encanto dionisíaco em ser de fevereiro, mas posso afiançar que não é fácil de se levar a marca desse mês truncado e biruta. 

Fevereiro é a ovelha furta-cor do zodíaco. Apesar disso, tenho a convicção de que no abismo pré-natal sentia eu o medo pânico de chegar atrasado, isto é, de não nascer em fevereiro. Tivesse nascido a primeiro de março, como o Moacyr Werneck de Castro, seria um outro homem, mais consequente, mas teria fugido ao meu bagunçado destino.

Fevereiro é o sumo do Rio. O carioca funciona os nove meses efetivos: joga tudo pro alto em dezembro; põe-se em sossego em janeiro, para reflorir e dar de si em fevereiro. É como se a população tirasse a roupa e ficasse nua. O que também acontece –  mas estou me referindo às roupagens convencionais que nos escondem e falsificam.

Quem mora no Rio, por ciência ou por instinto, sabe que no mês de fevereiro pode acontecer tudo: o calor de estrumbicar passarinho e o aguaceiro desatado; as calmarias de um amor divino e os emboléus de um amor infernal; quem pretende matar o trabalho e ir comer ostras na Barra da Tijuca costuma acabar comendo ostras na Pedra de Guaratiba – pois em fevereiro as disposições honestas são sempre contrariadas e as disposições vadias são sempre cumpridas. 

Quem mora no Rio deve aprender o seguinte: o Rio é medularmente o mês de fevereiro. Quem vive aqui os dias abrasivos de fevereiro viveu tudo (ou quase tudo) da graça e da fantasia carioca. É meter a calça curta e sair por aí: tudo acontece. E embeber-se de fevereiro, pois o mês vai terminar de repente com um baque, como o chão que falta, e é preciso viver intensamente quando nos sentimos emaranhados na armadilha do efêmero. 

Fevereiro é um resumo da existência carioca: curto, sacudido, sensual, encalorado, colorido, dourado, irreal. Fevereiro encerra todos os adjetivos do realismo fantástico. Machado de Assis estranhava que, por obediência à tradição, o carnaval vigorasse no verão causticamente, ora, o nosso carnaval está certo, tendo se modelado pelas condições de fevereiro, tornando-se a simbolização em carne viva duma cidade que se despede das férias. Tudo é carnaval em fevereiro. Quando o carnaval cai em março, o carioca perde muito do rebolado: é como festejar o aniversário duma criança dois dias depois, só por ser mais conveniente. Março, não; em março todo mundo sabe que a vida civil e chata começou. Março é o fim.

paulo-mendes-campos
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