Era um bonde cheio, vindo pela rua Sete de Setembro, um pouco depois de seis horas. Nele viajavam dois jornalistas.

Em uma das paradas, um problema entrou no bonde, um problema na figura de um homem de idade, uma figura até bastante digna e austera. Se não existisse um pormenor: o homem não usava camisa. Usava um peito peludo e encanecido. Acomodou-se em um banco e ficou sério, indiferente à infelicidade dos companheiros: um velho sem camisa, em um bonde, cria de repente uma perplexidade desagradável na vida dos que o circundam.

O mal-estar se agravou com a intervenção do condutor: “O bonde não segue se o senhor não vestir uma camisa”. O velho olhou desamparado, ele não tinha camisa. “O bonde não pode seguir” – dizia o condutor em um ímpeto militar – “é do regulamento que os passageiros estejam decentemente vestidos”. Os demais passageiros deram um olhar rápido e infeliz às próprias roupas. Depois, consultaram de leve as próprias consciências: expulsa-se o velho? Mas expulsar de um bonde um pobre velho que nem tem camisa?!

O destino do velho perigava nesse breve instante de consciência a deglutir o certo e o errado, o bem e o mal.

Só o funcionário da Light continuava taxativo e impiedoso como uma cláusula de contrato: “O bonde não segue... Lamento muito, mas quem vai sofrer depois as consequências sou eu...”.

Aquele “lamento muito” aliviou um pouco as consciências dos passageiros. Afinal, o condutor era também um operário, um pobre, a cumprir duramente o seu dever! A esse argumento íntimo, juntou-se a impaciência da demora do veículo. O tinir da campainha de outro bonde, que vinha atrás, e tentava passar, também vinha depor contra o homem sem camisa.

– Desce! – gritou, tímido, um dos passageiros. 

– Já que é proibido viajar sem camisa, o jeito é descer – raciocinou uma senhora em voz alta. 

O condutor se entusiasmou e passou a puxar o velho pelo braço.

Nisso, vendo o desfecho iminente, Francisco de Assis Barbosa (um dos jornalistas) protestou: 

– Ora! Deixem o pobre velho! Afinal das contas o fato do velho estar sem camisa não vai impedir ninguém de chegar em casa...

– Toca o bonde! – gritou um mensageiro dos Correios e Telégrafos.

Pasmo nas consciências. Isso era fazer voltar tudo ao princípio, à dificuldade da opção moral de expulsar ou não o velho.

Salvou o momento um cidadão baixo e atarracado, meio parecido com o sr. Otávio Mangabeira. E não menos parecido no vigor do discurso com que se dirigiu àqueles lídimos representantes do povo:

– Meus senhores: seria um ato de impiedade tocar a pontapés de um bonde um mísero ancião, tão mísero que não pode comprar uma camisa. A pobreza é uma coisa sagrada! Maltratar um pobre é cuspir nos princípios cristãos em que nossas genitoras nos educaram. Apelo para o sr. motorneiro para que toque o bonde.

– Muito bem! Muito bem! Toque o bonde! – gritaram de todos os lados. Aí deu-se o inesperado: o pobre velho, que até então se mantivera impassível e triste como um réu, exaltado com o barulho, entrou a gesticular e a murmurar coisas incompreensíveis, exceto as palavras obscenas, audíveis a todos. Estava bêbado como um gambá. 

Sem dar sinal de decepção, o Mangabeira tomou de novo a palavra:

– Senhores, já que esse pobre ancião se encontra em estado de embriaguez, deve cessar a nossa compaixão. De fato, a companhia não permite que se viaje em um estado lamentável como esse.

E o velho, sob o riso, a vaia, a aprovação geral, foi posto aos empurrões para fora do bonde. E as consciências respiraram a brisa da tardinha.

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