A maior tartarugada da América do Sul não houve. Mas durante dois meses foi um acontecimento entre um grupo de sibaritas fim de semana que frequenta à tarde um bar do centro.

A tartaruga sonhava em câmera lenta na areia cálida das margens de um igarapé amazonense, sonhava com o mundo melhor de daqui a 200 anos, quando a pegaram e lhe torceram o destino.

Foi encaixotada, baloiçou na correnteza de um rio em uma igara frágil, tomou um avião em Belém, voou sobre as nuvens, como suas antepassadas lendárias, não para a festa do céu, mas para a panela de um coronel amigo meu.

No bar, não se falava em outra coisa. Era uma soberba tartaruga, volumosa, da raça mais nobre e saborosa. Durante vários dias discutiu-se a melhor maneira de assassiná-la, prepará-la, cozinhá-la e comê-la. Entre os convidados do coronel, havia gente do norte, sequiosa de repetir um prato, e gente do sul e de Minas, que aguardava com alguma ansiedade o momento de prová-lo.

A tartaruga desceu no aeroporto Santos Dumont, onde o coronel e dois íntimos dele foram levar as boas-vindas ao delicioso quelônio, seguindo para a residência do primeiro, no Leblon. Aí, ela passou a esperar a morte com um estoicismo estúpido. Alguns dos futuros convivas foram visitá-la pessoalmente e voltaram encantados: “É uma tartaruga genial”!

A data do banquete foi marcada. Depois adiada. O que foi? O que houve? Ela anda meio triste, explicava o coronel consternado. Saudades da pátria, disse um paraense. Pressentimento da morte, arriscou um sujeito romântico.

A verdade é que a tartaruga não ia lá muito bem das pernas. Mergulhara em um quietismo exagerado, mesmo para um animal de sua espécie, recusava delicadamente qualquer alimento, espichava o pescocinho mecânico, contemplava com desalento o mundo exterior, e voltava à solidão inexpugnável de sua carapaça.

Nunca se vira no mundo tartaruga tão introspectiva.

Chamou-se às pressas um veterinário. Este chegou, de óculos, com sua ciência também subjetiva, olhou a tartaruga nos olhos, como se lhe perguntasse discretamente a idade, virou-a de barriga para cima, auscultou-a, redigindo depois, em silêncio, uma receita.

— Pode-se fazer alguma coisa por ela, doutor? — perguntou o coronel, pálido, mas disposto a saber toda a verdade.

Sinto dizer que ela vai muito mal — respondeu em tom frio o veterinário. Sofre de arteriosclerose. Deve ser uma tartaruga em idade muito avançada. Suas túnicas arteriais devem estar duras como pedras.

— Bonito! — exclamou o coronel.

— Como?! — interrogou o veterinário, achando que o dono da cliente aludira às palavras técnicas empregadas por ele.

— É que eu ia fazer um big almoço dela... Agora o que vou dizer ao pessoal?

Em um sábado pela manhã, a tartaruga entrou lentamente em pane e morreu. Teve um enterro comum de bicho morto.

Mas no bar houve um momento de condolência, quando soubemos da infausta notícia. 

paulo-mendes-campos
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