Confesso, confesso: errei, sim. Errei propriamente não é a palavra – digamos que traí. Ou antes que estou traindo. Ilha dos meus velhos amores, querida Paranapuã, vou te dar adeus. Amores são assim inexplicáveis, eles vão e eles vêm. Se todos os amores fossem firmes e eternos, que seria deste mundo? Não haveria nem poetas, nem romances, nem teatro, nem fitas de cinema, nem sambas: o mundo seria um deserto de inamovível e estúpida felicidade.
Não é que eu tenha deixado de amar. Onze anos, como se costuma dizer que são os melhores da nossa vida, onze anos, muita lágrima, muita dor violenta, muito cuidado – vida; onze anos aqui passamos neste vale escondido por trás do morro do Barão. De repente, mudaria a ilha ou mudamos nós? Por certo mudou a ilha. Virou gente. Cresceu. Calçou-se. É um bairro hoje, um bairro de futuro, a Copacabana do fundo da baía. Já não é mais aquele retiro agreste aonde a gente vinha se esquecer das agonias da cidade. Hoje a ilha é cidade.
Falei que foi de repente; qual, o processo foi lento, inexorável, se bem que pouco perceptível. Começou, faz muitos anos, quando tomaram a praia Grande, construíram um muro e botaram um quartel dentro. Primeiro sinal de alarma, em que ninguém atentou. Depois os aumentos do aeroporto. Por fim, a ponte. Daí para diante, não houve mais como deter a onda. Aí, é o progresso, meus senhores.
Quer dizer que o erro não é da ilha, pois o natural do pequeno é crescer, do atrasado é subir. O erro é da gente. Alma de bugre, o que ela pede são matos e praias desertas e coroas de rio e catinga sertaneja. Com poucos homens, com mais bichos do que homens. Onde se possa dar um tiro num gavião sem precisar pedir licença à polícia – e mormente onde haja o gavião. Onde se possa preparar o caniço ou o landuá e ir buscar o almoço. Isso tudo já foi a ilha. Hoje não é mais. Onde a gente era pobre sem ter bem noção disso, porque todo mundo ao redor era pobre também. Agora, todos aqui somos ricos, temos casa encerada, fogão a gás, colchão de mola e televisão. Em vez do matinho no quintal, onde as galinhas ciscavam, temos gramado, filodendros e antúrios – e as galinhas vivem confinadas –, como também é moda. Em vez da aventura marítima que era dantes uma viagem à cidade, hoje chegamos à esquina e esperamos o lotação e o ônibus, e ainda achamos ruim quando a condução demora mais que os dez minutos regulamentares.
E aquele coração de goiano aborígene e o outro coração, seu companheiro, de sertaneja mais aborígine ainda (se é que a condição de aborígene tem grau), como se portarão eles ante todas essas excelências civilizadas? Ora, os corações aborígenes emigram, é evidente.
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Paisagem clara do meu sertão nativo, tabuleiros de panasco ondulando ao sol, serrotes do Quixadá refulgindo a distância, água parada do meu açude refletindo a casa branca que, com nossas mãos, traçamos no papel e erguemos do chão, tijolo por tijolo; janelas azuis onde nos debruçamos, meu tourinho holandês comendo placidamente o seu resíduo no tanque de cimento, rebanho de ovelhas e cabras voltando ao entardecer para o chiqueiro; moitas de mofumbo em flor cheirando ao calor doce do mês de maio, bandos de marrecas cortando o céu num alarido em busca da lagoa do Seixo –, essa é hoje a nossa meta. Mais longe um pouco; porém, o que são quinhentas léguas a quem ama? O amor dá asas, sabe-se. E a Panair ajuda o amor.
O Rio fica sendo apenas um local de passagem, um sítio de estadia obrigatória, onde se ganha a triste vida e onde se esperam as férias, cada ano.
A alegria, o repouso, o refúgio, mudaram-se para mais além, além, muito além daquela serra, como dizia o meu primo.
Tome a direção do nordeste, voe ou ande os seus três mil quilômetros – estado do Ceará, estrada de ferro de Baturité, município de Quixadá, fazenda Não me Deixes. Uma casa nova em folha e dois criados às suas ordens.