Morre 1949, nasce 1950 e, segundo o costume jornalístico, faz-se o balanço dos sucessos principais do ano que acabou — uma espécie de ajuste de contas para as despedidas. Segundo opinião unânime da imprensa mundial o fato mais importante ocorrido em 1949 foi o estouro de uma bomba atômica em terras soviéticas, anunciado pelo presidente Truman. Mas isso é lá no vasto mundo. Aqui no Brasil, felizmente, as coisas são mais miúdas. E assim mesmo, haver propriamente não houve nada; antes houve e não houve mais conversa do que outra coisa. O melhor será, pois, dizer mesmo o que não houve: não se escolheu candidato, não se barateou a vida, não se acudiu ao problema das favelas, nem o da infância abandonada ou delinquente, nem o da saúde pública, nem se endireitou a polícia. E até mesmo o único melhoramento de vulto, o aumento do preço do café, foi feito de forma negativa: consequência da safra ruim, pobreza das reservas, broca, geada e seca...

Progresso, progresso só se registrou muito grande no referente ao que se convencionou chamar de “classes criminosas”. Roubos, assaltos, furtos, arrombamentos, assassínios em todos os graus, homicídios dolosos, atropelamentos com e sem culpa, foi isso o pau que mais rolou no noticiário da imprensa.

Dizem que o moto contínuo e o crime perfeito são sonhos irrealizáveis: no Brasil, porém, são realidades. Não vê que um homem já anunciou nas folhas que descobriu o primeiro, e na matéria do crime perfeito, ele aqui é executado em qualquer grau de perfeição. Estrangulam-se velhos, assassinam-se maridos, enforcam-se capitalistas, caçam-se esposas a bala, esfaqueiam-se desafetos, liquidam-se desconhecidos, escondem-se cadáveres misteriosos em terrenos baldios, nos prédios em construção, nos morros e matas da cidade — e tudo é crime perfeito, já que o criminoso não se descobre. Ninguém sabe quem matou o marido de Araci, ninguém sabe onde está Paulista, o estrangulador do velho Demóstenes, ninguém sabe quem deu o tiro no caseiro do inglês, jamais se decifrará o enigma da moça assassinada no quarto onde estava em companhia do marido, e muito menos se há de saber quem deu o tiro fatal na outra moça, a do comício. Faz-se um rigoroso inquérito e pronto. Até parece que eles acham que o inquérito já é castigo bastante...

Aliás, voltando a esse assunto de moças, o Rio de Janeiro está ficando na verdade um cemitério de moças. Morte de moça é aqui assunto dos mais comuns e ao mesmo tempo dos mais obscuros. Parece que povo e autoridades se convenceram de que morrer moça é o mesmo que morrer anjo, caso de festa e não de choro. Que é melhor guardá-las com a sua capela debaixo do chão do que deixá-las pecando e fazendo pecar, em cima da terra. Morrem moças de bala, de faca, de formicida, de intervenção criminosa; morrem andando de automóvel, morrem nas águas do mar. Saem das casas dos pais diretas para morrer ou nos braços dos amantes se esquecem de que ainda há mundo, e deixam que o amor as mate.

Porém o mais promissor aspecto da vida criminal da cidade são os assaltos a mão armada. Outro dia escutei uma discussão de dois mocinhos meus amigos. Dizia um que isto aqui está ficando feito a Paris do tempo dos Pardaillan. Era um rapaz antiquado, criado pelas tias solteironas, que ainda lia esses livros, em vez de histórias de quadrinhos. O outro discordou, achou que o Rio parecia era com Chicago. E então o leitor dos Pardaillan explicou a sua teoria: que o sistema de assaltos empregado no Brasil, altamente individualista, era puramente medieval, nada tendo em comum com o crime organizado das grandes cidades americanas. O daqui era crime à velha moda do truand, praticado com instrumento primitivo, o cacete ou o tijolo, ou com a velha arma branca, a faca ou a navalha. Nada de armas automáticas, de automóveis blindados, de organizações industriais de crime. E concluía o mocinho: “Só com o melhoramento das nossas condições econômicas e a perspectiva de maiores lucros, o negócio do assalto a mão armada se poderá organizar em corporações e dispor de material moderno e custoso para o trabalho. Por ora o pauperismo não permite mais do que a ação individual...”

Assim, esperemos que em 1950 as coisas progridam: que os assaltantes de rua passem a usar pelo menos jipes, e disponham de algumas Tommy Guns leves; e deixem de atacar os pobres casais de operários e pequenos burgueses que amam, ou simplesmente transitam pelas ruas da cidade, e vão se dedicar aos grã-finos, cheios de dinheiro e de joias, nas estradas das estações de veraneio. Pelo menos é essa a previsão do técnico.

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Outra coisa, que não chega a ser previsão, é antes um bom desejo, será esperar-se que em 1950 fique resolvido o drama do Candidato. Assim como vai, os mal-intencionados estão nos vencendo pelo cansaço, de tal modo que acabaremos aceitando até mesmo o benedito, contando que não se fale mais nisso.

E para que tal não aconteça, creio que não será muito pedir a Deus que haja mesmo candidato, que seja homem de bem, e que haja eleições para nele se votar, e continue a haver governo para ele governar. Afinal, não é ambição demasiada, e talvez sejamos ouvidos. Deus Nosso Senhor tem andado um pouco desatento aos nossos negócios, nestes últimos tempos; mas agora, no seu Ano Santo, talvez se lembre de que somos 50 milhões de órfãos ao desamparo, e de nós se compadeça, e para nós volva os Seus Olhos.

rachel-de-queiroz
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