No seu livro Um começo de vida (comentado nesta coluna em número passado), conta Raimundo Souza Dantas que, nos primeiros contatos seus com a literatura, um amigo o aconselhou a “tentar Dostoiévski”. E acrescenta: “Foi um conselho que me levou ao abismo, que quase me destrói, pela desorientação que criou em meu espírito”. Depois, indaga pateticamente: “Não seria um inimigo da humanidade, aquele Dostoiévski”?
Lembraram-me estas palavras do moço escritor ao reler a edição brasileira do Crime e castigo, recentemente publicada . Pois a mim também me parece que é justamente essa a primeira impressão deixada por Dostoiévski no seu leitor iniciando: uma impressão de abismo, de um indefinido perigo, uma galeria fascinadora de monstros, estranhamente parecidos com nós próprios, mas monstros de qualquer maneira; e atrás desse abismo, o noviço, embriagado, não pode descobrir se fica a loucura, ou a danação, — ou ambas.
Tão preocupado ele próprio com o problema do bem e do mal (não fosse um espírito essencialmente religioso), o que, entretanto, o demônio russo consegue logo aos primeiros capítulos é nos arrebatar para um pico descalvado, batido de ventos desconhecidos, pairando muito acima de todo bem e de todo mal. E se o desgraçado leitor trazia consigo preocupações éticas convencionais, ou se já tinha as suas noções de bem e de mal delimitadas e positivas, graças a uma disciplina religiosa ou moral anterior, a sensação que o possui é a de que foi arrastado para o caos, que lhe tiraram a terra firme debaixo dos pés, que a sua antiga humanidade ordeira, matematicamente dividida entre pecadores e bem-aventurados, é outra raça de homens, completamente diversa daquela tumultuosa, demoníaca, irresponsável humanidade dostoievskiana; e a sua reação imediata é entregar-se à dúvida, sentindo que de algum modo o ludibriaram com aqueles esquemas morais que até então considerava irrepreensíveis. Isso, quando não pode arranjar em si forças para fugir, para recusar com horror o fascinante espetáculo de desordem, paixão e loucura.
Aqueles que ao contrário não tinham certezas nem conceitos morais firmes, que já eram eles próprios presa da insegurança, da solidão, de desconfiança na legitimidade dos conceitos clássicos de bem e de mal, — para esses Dostoiévski representa o mergulho total, a confirmação de todas as suas negações tímidas, a afirmação de todas as suas suspeitas indefinidas.
Só depois, na releitura da obra, é que a gente mal e mal vai firmando o pé no maremoto dostoievskiano, vai lhe descobrindo as intenções — ou vai lhe acompanhando os impulsos que os desviam dessas intenções; e então se ousa aos poucos ir tirando conclusões morais, e de alguma forma participar da pesquisa angustiada que foi toda a obra do romancista. Essa participação é sempre uma das últimas etapas percorridas pelo leitor de Dostoiévski; os primeiros contatos são justamente o contrário, quase que só a pura embriaguez, a cumplicidade e o terror. Sedução, medo — só muito mais tarde, entre indecisões e recuos, é que se esboça um tímido caminho de compreensão.
Este Crime e castigo por exemplo. O título parece encerrar uma situação tão simples e já de si definida e segura: a história do pecador que recebe a sua punição. Mas penetre o leitor no drama, deixe no canto a velha Alena com sua cabeça aberta a machadadas, acompanhe um pouco Raskolnikov no torvelinho do seu mundo interior — e ei-lo imediatamente a apalpar em redor de si em busca dos quatro pontos cardiais, já sem saber de nada, quanto mais de onde é que vem a punição ou mesmo onde é que começa o crime. Onde parece que há apenas castigo e sofrimento a obra de redenção íntima já se opera, e quando parece que a salvação chegou, quem poderá dizer se o remido não estará novamente a danar-se?
Augusto Meyer o grande ensaísta que é também um grande poeta até nos seus ensaios, e que por isso mesmo é uma das poucas pessoas deste mundo capaz de tocar, sem sacrilégio, no mistério Dostoiévski, faz em À sombra da estante um estudo sob o título “Sempre Dostoiévski”, cuja leitura reputo essencial, tanto a quem se inicia, com a quem já a conhece e ama, ou mesmo a quem se apavora com a obra do russo imenso.
E permitam-me terminar estas linhas com a citação de um trecho desse estudo de Meyer que é, de certo modo, uma resposta àquela assustada indagação feita pelo jovem Souza Dantas no seu amanhecer literário:
Chego mesmo a pensar que há em Dostoiévski, de modo consciente, a malícia das contradições declamadas. Seu representante mais alto é o homem subterrâneo; avultando sobre as outras personagens, o homem subterrâneo é aquele mesmo demônio interior que o arrasta para a ebriez da liberdade trágica, uma liberdade ao mesmo tempo criadora e destrutiva — criadora no sentido estético, mas terrivelmente desesperada e destrutiva em seu sentido mais profundo.
O campeão da Rússia ortodoxa, juntamente com os dois grandes profetas do século passado Nietzsche e Kierkegaard, — é um revolucionário integral. Que importa apontar nesses gênios luciferinos a saudade da paz e o desejo do resserenamento das angústias pela subordinação a um credo qualquer, se eles representam a contradição humana elevada a um grau de vertigem?
E como sempre, quando se trata de Dostoiévski, a resposta termina com uma interrogação.