Faz muitos, muitos anos que a agonia começou. Quantos, meu Deus? Para ser bem exato, podemos dizer que começou com o drama de Sacco e Vanzetti. Recordo a noite fatal — eu era adolescente e não conseguia dormir; à hora da execução, pareceu-me que a luz acesa baixava (tal como deveria estar baixando na Casa da Morte, em Massachusetts), e gritei para o quarto vizinho: “Mamãe, neste instante estão matando os dois!” — e mamãe já se levantava, emocionada também, quando a voz de papai lembrou a diferença de hora daqui para lá. Senti-me aliviada, como se houvesse obtido um adiamento da execução.

Anos após foi a tomada do poder por Hitler, o plebiscito do Sarre, o Anchluss. Já a esse tempo o rádio trabalhava mais que a imprensa, e começou a se regularizar o plantão junto ao aparelho. Quantas noites, de aflição entre o chiado da estática e a vã procura pelas estações de onda curta. Deus seja louvado, como o rádio progrediu!

Depois foi a guerra da Espanha. Dessa não posso falar com minúcias, porque ainda me dói muito o coração. Do primeiro ao último dia andei com eles, entrei com eles, até o amaríssimo fim — sendo que a pior etapa foi a que precedeu a queda de Barcelona. Aí, não só eu chorei, muita, muita gente chorou.

Vencida a Espanha, veio um período de marasmo e mágoa. A guerra da Abissínia era como a coroa das iniquidades — que se podia esperar mais? E, contudo, como se tinha o que esperar! Porque aí veio o ano de 1939. E aquela dramática semana de agosto. A tensão era tão grande que já não nos bastava o rádio, tínhamos que sair pela rua, rondar as redações de jornal, e as agências telegráficas. Esse período de intensa aflição internacional foi exemplarmente retratado pela frase célebre do grande Evandro Pequeno. Era quase madrugada, num dos dias que precederam a guerra. O grupo aflito namorava as janelas da Havas, de onde a qualquer momento poderia sair um informante. — Será que sacrificam a Polônia? Será, minha Nossa Senhora, que vamos assistir a um novo Munich? — Alguém murmurou que não aguentava mais, que ia dormir. E Evandro, agarrando-se heroicamente a um poste, declarou: “Eu também estou exausto. Também dava tudo para ir para casa, dormir, mas não vou. Sei que assim que eu pegar no sono, o Chamberlain aproveita e faz uma sujeira...”

Pois era esse o obscuro sentimento de nós todos: que estávamos também ajudando, aguentando a mão, vigiando, exigindo...

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Mas foi mesmo a guerra de 39-45 que nos arrasou na dedicação internacional. Rebentamos, afinal, de tensão excessiva. Varsóvia, Holanda, Noruega, capitulação da Bélgica, dita da França, Dunquerque, blitz em Londres, Pétain, campanha da África, fuga de Hess, invasão da Rússia, idem da Grécia, Stalingrado, Pearl Harbour, luta no Pacífico, Brasil na guerra, invasão da Itália, capitulação de Mussolini, prisão e fuga do dito, morte do dito, dia D, Normandia, bolsão Patton, bombas V-2, avanço russo, morte de Hitler, Berlim, morte de Roosevelt, camicases, BOMBA ATÔMICA! Foi demais. Tão demais que nos esgotou o nervo internacional.

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Mas ficou o drama nacional tinindo. Com a sua marcha de caranguejo, para diante e para trás. 29 de outubro — eleições. A surpresa Dutra — eleições. (Naquele malfadado setembro de 50 nós estávamos na Europa, ouvimos falar na incrível candidatura, parecia brincadeira. Mal podíamos ver um rádio, caíamos em cima, catando o Brasil, que nunca se achava.) E voltamos correndo e houve a fatal eleição, a fatal posse. E aqueles inquietos e dramáticos três anos. Aí a vigília junto ao rádio tornou-se efetiva, piorada apenas nas sucessivas horas de crise. O cinco de agosto já nos encontrou em plantão permanente; qualquer coisa nos dizia... e foi aquela acumulação de angústia até o tiro do dia 24.

Com a tragédia, poder-se-ia esperar que as coisas parassem. Afinal, era um clímax. Mas quem disse que paravam? O que fez foi sair pra outra: tensão, eleição, tensão, — eleição, apuração — crise....

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O fato é que não é preciso sequer tomar Pervitin. A inquietação não deixa. Há noites em que se faz greve. Cedo ainda, 23h30, apaga-se rádio, televisão, tudo, — e cama. Mas quando já se vai fechando os olhos, vem a lembrança: “Meu Deus, daqui a pouco tem o jornal da meia-noite...” Reage-se. De manhã repetem. “Daqui para lá não acontece nada...”.

— Não acontece? Quem garante? E vem o remorso, o sentimento de culpa. Parece que estamos abandonando, renegando a pátria nossa mãe, em troca de uma miserável meia hora de sono. Relutante, enfia-se o robe, vai-se tropeçando pela casa escura até ao rádio. Liga-se botão, espera-se que esquente, atura-se o fim do programa anterior, esporte ou bolero, e afinal toca o clarim do “grande jornal”. E então se escuta do Egito e da China, e do Tribunal do Júri, e do assalto da vedette; mas da política mesmo que é bom, nada. Respira-se com a sensação do dever cumprido. Embora frustrado. Bem, agora berço. Mas aí vem a suspeita terrível: se o rádio está com todo esse mistério é porque está havendo qualquer coisa. Por que não falou no inquérito? No discurso do líder? Na entrevista do coronel? Que silêncio será esse? A pulga cívica atrás da orelha, enxota o sono. Acende-se a luz mais forte, pega-se no crochê, — o mais garantido é esperar o jornal da 1h00... Afinal, quando a pátria corre perigo, o que é esperar uns tristes 40 minutos? E então a história recomeça toda...

rachel-de-queiroz
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