Talvez me digam que o tema destas notas, por estritamente regional, não deveria ser tratado nas páginas de O Cruzeiro, revista nacional e internacional. Mas eu contesto que sim, que o assunto embora tratando de Baturité, no coração do Ceará, é assunto nacional, não só porque afinal de contas Ceará também é Brasil, como porque isto é uma amostra de como se governa este país; — de como o regime do “coronel” continua vivo e fero, e assim fero e assim vivo continuará, — enquanto o “coronel” puder negociar o seu prestígio eleitoral ao preço de iniquidades e absurdos.

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A nossa província é conhecida como a pátria das secas. O céu não chove direito, a terra em geral é pobre, os rios são temporários. Mas o que pouca gente sabe é que, naquela região de agricultura tão difícil, existe um paraíso, emergindo como uma ilha no meio da catinga rala e dos tabuleiros sertanejos 

“entre as águas vertentes dos rios Choró e Canindé e nas cabeceiras do Pacoti, ergue-se a uma altitude de mil metros uma vasta montanha, eriçada de espigões e recortada de longos vales, de onde emanam límpidas “correntes” que nas quebradas se vão reunindo em rios perenes e torrenciais”. (Antiga Família do Sertão — E. de Queiroz Lima, p. 208, Livraria Agir Editora). 

É a Serra de Baturité. 

Ali, nos anos mais terríveis de seca, quando o sertão todo está pegando fogo, as nascentes continuam dando água, o verde não murcha. A serra é o refúgio do flagelado, e não sei de sertanejo daquelas ribeiras que não tenha, pelo menos num ano, escapado vida e fazenda, nos vales frescos de Guaramiranga ou do Pacoti.

A serra é bela, verde, cheirosa como um buquê. Lá se cultivam não só as frutas nacionais, como flores e frutas europeias. O clima é semelhante ao de Petrópolis, — menos o russo e a umidade. A principal cultura da serra é o café; e a terra é tão fértil, que os roçados abertos em Guaramiranga por meu bisavô João Batista, em 1848, ainda são os mesmos onde atualmente os meus primos Matos Brito plantam e colhem café de primeira. Sim, o café que aqui no Sul liquidou com o Estado do Rio, devorou S. Paulo e hoje ameaça o Paraná, — o café, o vampiro de terra, lá na serra vive muito bem em roçados com mais de 100 anos de cultivo ininterrupto. Isso é a Serra de Baturité.

Aos pés da serra fica a cidade que lhe deu o nome, o velho burgo de Baturité, que no ano próximo completará o seu centenário. E agora recebo cartas e telegramas aflitos dos moradores da serra dizendo que o chefão político de Baturité, para festejar à sua moda o centenário, resolveu consumar um projeto seu, antigo e criminoso: vai afogar a serra. Sim, isso mesmo, afogar. Numa região como aquela nossa, onde a terra fértil e de água perene é um tesouro sem preço, quer-se afogar a serra debaixo de um açude. Por quê? Prestígio político. Porque um homem poderoso da cidade de Baturité “para mostrar poderio”, como a heroína do poema prudentiano, quer represar as águas de serra acima, a pretexto de fazer o abastecimento da cidade. É o chamado projeto do açude “Labirinto”, estudado pelo DNOCS e já abandonado, justamente pelas tremendas inconveniências que a sua localização criminosa acarretaria: vinte e oito propriedades agrícolas, com fábricas de farinha, aguardente e rapadura, beneficiamento de café, vastos canaviais, vastos cafezais e pomares — afundados sob o açude; duas mil e quinhentas famílias ao desamparo — esse será o resultado do “Labirinto”, se o constroem. E o engraçado é que, mais embaixo, já há outro açude estudado, o “Tijuca” que servirá amplamente às necessidades de Baturité, e submergirá apenas uma grande propriedade, que o dono está pronto a vender...

Acontece, porém, que, hoje, a construção da barragem do “Labirinto” é questão de capricho, de prepotência. E nesta terra manda quem pode, não é mesmo?

Será possível que o DNOCS — ou seja, o Departamento Nacional de Obras Contra Secas, se deixará encaudilhar de maneira tão submissa? Espero que não. E também espero muito da inteligência, da honestidade, do sentimento de justiça do meu fraternal amigo, o governador Paulo Sarasate, a quem envio esta denúncia e a quem lembro que foi ele, em 1952, a esse tempo deputado federal, a mais forte barreira contra o desgraçado projeto do “Labirinto”, então aventado.

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Dirão que falo nisso com tal calor porque a serra me toca o coração, porque tenho parentes lá, porque minha gente será das mais massacradas pelo nefando projeto. Claro. Clamo eu, justamente porque me ferem e sei onde dói. Justamente porque amo aquela terra — que para nós, meninos sertanejos, era o próprio paraíso — justamente em nome desse amor é que peço aos poderosos que não deixem se consumir tal crime. Poderá haver maior loucura: no meio do deserto se arrasar o único oásis?

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Meus amigos da serra, meus primos, minha gente, o governador Sarasate é um grande brasileiro. Não creio que, embora o assunto seja de alçada federal, permita ele que, no seu governo, esse mal se consuma. Entre um mau querer e um bom deixar fazer, há uma grande distância. E fico tranquila de que celebraremos o centenário de Baturité, sem que nenhum lençol de água assassino cubra a nossa terra, e que ela continuará para sempre linda e feliz, com o seu cheiro doce de jasmim e de laranjal.

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