Escreve alguém aqui para a “Última Página”, censurando amargamente a cronista que, “com o seu pessimismo, sua melancolia, tira o estímulo à ambição dos leitores”. Ora viva. Com que então tiro-lhes a ambição? Ah, não creio ambição seja dente de leite para cair com tanta facilidade. Tem raiz dura e precisa motivo forte para vir abaixo.
Aliás, fosse isso verdade, de qualquer forma não me importava muito. A ambição que é considerada pela mentalidade que nós costumamos chamar de “americana”, como o mais legítimo estímulo do homem (e o desambicioso como uma espécie de cruza de invertebrado com cretino), a ambição, confesso-o, sempre me provocou um secreto sentimento de desprezo. Dir-me-eis que sem ambição não se teria construído o mundo, a civilização, o progresso. É verdade. Mas também tudo isso não teria sido feito tão malfeito como é. E disfarça-se ambição com o nome de “ideal”, e transforma-se em “idealismo” o que é simples avidez, cobiça, exibicionismo e instinto predatório. Um sujeito, por exemplo, funda um colégio, claro que para ganhar a vida; mas convence-se de que o seu “ideal” é fazer daquele colégio o estabelecimento mais importante da cidade. Ou funda um jornal, ou uma loja, ou um hotel, ou um salão de banhos turcos. Tudo vem dar no mesmo. Mas fiquemos com o exemplo do colégio, que é o mais nobre e disfarça melhor os motivos do ambicioso. De posse daquele ideal, o camarada se atira ao trabalho. Maltrata o corpo que Deus lhe deu para uso moderado tanto nos prazeres como nos esforços: trabalha vinte horas por dia, esgota-se, consome-se, e acha que está fazendo obra meritória porque enche o estômago de úlceras, as pernas de varizes, perde os cabelos, as boas cores, ganha barriga, nervosismo e papada. Na obsessão de atingir aquele triunfo que ele próprio suspende diante de si, como a clássica cenoura diante do asno, nada existe senão o sonho de alcançá-lo; tudo lhe é imolado. Os sete mares e os cinco continentes, as florestas e as cidades, o céu e as montanhas e os bilhões de seres humanos que povoam o mundo, nada existe para o ambicioso que deseja ver o seu colégio (ou o seu hotel ou etc.), transformado numa honra para a sua cidade. Tudo lhe parece desfocado, porque o infeliz só enxerga as quatro paredes do danado do colégio; a humanidade toda para ele se concentra no grupo malnutrido, mal pago e malsatisfeito do seu corpo docente, junto com o outro grupo adverso, desumano, irrequieto e ingrato, constituído pelo corpo discente. A arte, a literatura, a música, todas as coisas bonitas que enriquecem a terra, desaparecem totalmente ante a visão obtusa do obcecado: somem-se por trás do vulto canibalesco do “ideal”. Para aquele coitado Shakespeare em todo o seu esplendor, é apenas um compêndio para tradução de inglês: o beija-flor é uma ave da família dos Troquilídeos, e Camões só fez os Lusíadas para que os meninos o destripem inabilmente nas aulas de análise lógica. Se pensa nas montanhas da Itatiaia, não recorda as flores e a água e o cheiro da serra ou alguma mulher que ele amou por lá ― pensa em termos de geografia quantos metros fica acima do nível do mar, e que hoje o pico da Bandeira tomou o lugar de pico mais alto do Brasil. E o pior de tudo é que o ângulo de sua visão mais pervertido entre todos é justamente aquele que encara as crianças, instrumentos do seu trabalho, matéria-prima na construção do seu “ideal”: para ele as crianças deixam de ser humanas, flores inquietas da espécie no seu único instante de beleza ― viram meras unidades de matrícula nas folhas dos seus livros de contabilidade, que todos os anos são promovidas e no fim de um certo período são diplomadas e substituídas. Não enxerga nos meninos nem os olhos, nem as pernas, nem a força sadia do animal jovem ― mas apenas essa convenção passiva e contábil ― o aluno “aplicado” ou “vadio”, o bom redator de composição ou o fraco resolvedor de problemas.
Aos sessenta, setenta anos o desgraçado morre. Ou oitenta, em geral, porque esses sedentários morrem tarde. E então os homens ao seu redor o chamam de ilustre, e falam em gerações agradecidas, e recordam a “nobre ambição” do extinto e até lhe erigem ermas nos jardins públicos. E o desgraçado, se pudesse se virar na sepultura, contemplaria radiante o mau uso que fez da sua curta e triste vida, e acharia que obrou excelentemente, e a si mesmo se consideraria um herói.