Diz Mauriac, citado por Valdemar Cavalcante, que os moços fazem amigos e os velhos fazem ingratos. Pode ser, com os velhos. Mas nós, que se já não somos propriamente moços, ainda não somos e mormente não nos consideramos velhos (ah, o lusco-fusco da meia-idade!), nós cometemos um erro quando fazemos amigos novos, mormente se esses amigos são de uma geração posterior à nossa. Amigo é como cachaça: quanto mais velho, melhor.
Pode haver nada mais confortável neste mundo do que um amigo velho. Não tem surpresas conosco, mas também não espera de nós o que não podemos dar. Não se escandaliza com o que fazemos, não se irrita, ou se se irrita é moderadamente. (“Toda vida ele foi assim...”) Não precisa a gente lhe explicar nada, o mecanismo de novos interesses e até mesmo de novos amores, porque o velho amigo conhece todos os nossos mecanismos. Mas, além dessa capacidade de compreensão quase infinita, se o amigo velho nos é acima de tudo precioso é porque preciosos também somos nós para ele. Aquela ternura, aquela condescendência que ele tem conosco, na realidade tem-nas é consigo próprio, pois o ato que lhe representamos é a imagem, o momento, atestado vivo da mocidade que ele já perdeu e que, entretanto, ainda lhe parece tão próxima, quase presente, embora os demais não se deem conta disso. Somos, pode-se dizer, não apenas o símbolo, mas a certeza e a saudade do moço que ele foi – há tão pouco tempo! E somos também a testemunha. E aí entra o capítulo das recordações e da saudade, recordações que podem ser chatas para todo o mundo que as escuta evocar – menos para o amigo velho, que é personagem delas e para quem, portanto, as tais recordações têm o mesmo glamour que para nós. Aliás, nessa derradeira circunstância é que bate o ponto: pois a coisa trabalha dos dois lados. Se ele é testemunha nossa, nós somos testemunhas dele. Se ele está pronto a tudo entender e a praticamente perdoar tudo – nós, também, em relação a ele, tudo entendemos e tudo perdoamos. Se nós somos o espelho dele em moço, para nós ele é idem idem.
Um cavalheiro dos seus quarenta e tantos, já começando a engordar, já com as têmporas encanecidas (ele está convencido de que lhe ficam muito bem, de que lhe dão um ar romântico), um cavalheiro cuja simples designação mostra quem ele é, pois não se diz mais um rapaz falando nele – um cavalheiro assim é apresentado a um jovem. A cena é, com raras exceções, um espetáculo penoso. Começa a antipatia, o jovem tratando o outro de senhor, e insistindo polidamente nisso, por mais que o senhor o trate por você e o ponha à vontade. Depois, assim que pode, à menor chance, o moço faz referência à sua mocidade, ou pelo menos ao que ele chama a sua geração, o que é uma forma positiva de marcar distâncias. E o pior é quando o mancebo quer ser amável, e diz que o outro está bem conservado, como se se tratasse de um arenque de fumeiro ou de uma múmia peruana. E assim, ante o moço que oscila entre o respeito e a condescendência, o homem de meia-idade tem que escolher também entre duas atitudes: ou se faz de moço ele próprio, encolhe a barriga, risonho, otimista, falando a gíria do dia, dizendo que “não se troca por essa meninada”; ou cai no extremo oposto, toma ares de ancião, dá conselhos, lamenta os tempos de agora, é capaz de citar o Bilac ou o Emílio de Menezes – embora nesses dias pré-históricos de Bilac e Emílio ele provavelmente ainda mamasse. Qual, é um constrangimento, uma situação penosa, quiçá humilhante, como diria um contemporâneo.
Agora, veja o encontro de dois velhos amigos: olham-se com prazer, examinam-se, não em busca dos sintomas da velhice que chega, mas dos restos de mocidade que ainda permanecem. Batem no ombro um do outro: “mas Fulano você está ótimo, que diabo faz que não muda, qual é o seu segredo contra o tempo, rapaz?” E o rapaz emocionado, crédulo, devolve os cumprimentos e é sincero porque o outro realmente lhe parece moço, bonito e florescente; ambos sabem que podem ter aparência de mais velhos por culpa de uma ruga ou outra, um novo dente postiço, um pouco menos de cabelo; mas na alma – na alma! – digam o que digam o calendário e os filhos crescidos, nunca se sentiram tão jovens. E trocam o que se chama em inglês ribald jokes e que eu não reproduzo aqui porque sou uma lady; e dentro em pouco estarão trocando retratinhos dos netos, e isso não faz nenhuma diferença, porque ter netos é uma nova mocidade, não é mesmo?
E se despedem num abraço de estudantes, e cada um vai para o seu lado feliz, remoçado, pisando o chão com pé duro, olhando o sol bem de frente.
Moral da história: conserve os amigos velhos, ou se tem que arranjar amigos novos, arranje-os da sua idade. Não se deixe humilhar pela arrogância dos moços, – mantenha-se moço, vivendo entre gente idosa. Lembre-se da Ceia dos cardeais (por falar em Ceia dos cardeais, afinal não somos assim tão velhos – quando ela esteve em moda nós ainda nem éramos gente!), pois lembre-se da Ceia dos cardeais, os três velhinhos reunidos, e aquele enternecimento:
“Sessenta anos, só? Vossa eminência é ainda uma criança!”
Assim é que se diz.