Vê-lo e amá-lo foi obra de um minuto. Assim diz a modinha e assim é verdade. Meu Deus, já tinha ouvido falar nele. Já tinha mesmo apreciado um retrato. Contudo, não esperei que fosse assim. Com aqueles olhos amendoados, o misterioso sorriso esquecido na boca e aquele abandono confiado de quem conhece muito bem a que braços se entrega, de quem só espera o bem, pois nem sabe que existe mal.

O principal, como já falei, são os olhos. E depois a meiguice. E o beicinho que se encrespa quando faz manha; e como é cheiroso, Senhor, cheiroso. Cheira a flor e a talco, mas cheira principalmente a fruta madura, talvez a maçãs no momento em que são colhidas, talvez àquelas uvas que dão vinho rosado, doces e queimadas de sol.

E sereno. Tranquilo, natural e pacífico, ainda intocado pela pressa do mundo.

Ficou no meu colo bastante tempo, quase imóvel, agitando vagamente um braço ou uma perna, me fitando com aqueles olhos que são o seu encanto maior. Olhos tão inocentes e que trazem dentro de si, por isso mesmo, toda a sabedoria das coisas que nascem completas. Mas não eram olhos vagos de recém-nascido, eram olhos de quem já enxerga, de quem assinala uma pessoa e, fitando-a, de certo modo toma posse dela e a incorpora ao seu mundo.

Houve um momento em que ele pôs a mãozinha no meu rosto e deixou-a estar assim vários minutos. Parecia fazê-lo intencionalmente, como para mostrar o seu poder, dizer: "Se eu quisesse você era minha, bastava que eu fizesse mais força com a mão: pois não estou vendo que já está cativa, que tem os olhos cheios d´água, que era capaz de ficar de joelhos olhando para mim o resto da sua vida?" Por fim retirou a mão e sorriu – mas não sei para quem sorriu.

Ainda não é homem, ainda não é nem mesmo gente, mas também já não é mais anjo, já participa da condição humana, já chora, já sofre dor, já tem medo, já deseja as coisas, já possui criaturas e objetos, já tem preferências e antipatias. E pensar que naquele corpinho de flor, que cabe quase todo nas palmas das minhas mãos, está um homem em potência. Já está o ser inteiro ali, completo e indivisível, com o seu destino marcado, com a sua personalidade escolhida, tal qual está a árvore dentro da semente. Aquelas mãozinhas de miniatura vão ser mãos de homem, destinadas ao trabalho, ao trato com máquinas, com livros, com utensílios do seu labor de homem – quem sabe até com armas de guerra, se mais tarde ainda houver guerras. E aqueles pés que nunca sentiram o contato do chão, que a seda mais fina pode ferir, irão calcar a terra com força, e firmarem-se nela tomando posse do seu lugar ao sol, e percorrerão caminhos e escalarão montanhas. E aquela boca vai tomar o desenho que compete a uma boca viril e irá aprender todas as palavras, palavras de amor com que há de enganar as mulheres, e palavras ásperas de luta e negócios entre homens, e repetirá teoremas, e recitará versos, e falará línguas estranhas. E aquela cabecinha miúda irá abrigar pensamentos de homem, e conhecimentos, e verdades e talvez mentiras, se mentiras lhe ensinarem. E o pequeno coração que pulsa agora como um brinquedo engenhoso, vai receber toda a carga comum ao nosso triste coração humano, e conhecerá o amor e a cólera, e, se Deus quiser, a alegria e a coragem, e a felicidade de viver e o prazer do trabalho fecundo.

Agora é uma coisinha de amor, a que só amor tem direito. Mas deixai que se passem alguns anos, e a misteriosa coisinha que nos palpita nos braços, que cheira a fruta madura e nos rouba o coração sem saber o que faz, terá se virado num ente adulto e grave, um homem com todo o seu poder e todos os seus recursos de homem, senhor da sua vida, capaz de escolher entre o bem e o mal, – que só o bem escolherá, naturalmente, benza-o Deus.

rachel-de-queiroz
x
- +