Sim, tão vasto. Para mim, para você, para os medrosos, para os cansados. Há outros, porém, ― pequenos e fracos, muitas vezes ― que não medem o mundo pela medida da sua pequenez, mas pela grandeza da sua ambição. E esses jamais diriam que o mundo é vasto.

Como o garoto que encontrei outro dia, à saída do mercadinho. Muito gentilmente me perguntou se eu queria que me carregasse a bolsa cheia de verduras. Olhei-lhe os bracinhos magros, a canela de passarinho, o sorriso de dentes miúdos ― tão grande era a impressão de fragilidade dada por ele que chegava a ser engraçada a sua ideia de aliviar de um fardo a gigante que eu representava a seu lado. Recusei, naturalmente, alegando que a bolsa era pesada, que decerto ele não poderia com ela; até eu, já me sentia cansada e estava pensando em arranjar um táxi... (Este povo da Ilha é muito independente, escolhe muito a natureza de trabalho; aqui não se encontra com facilidade um carregador. Quem tiver seu fardo, espere o bonde. Aquele menino era uma exceção).

O garoto, porém, insistiu.― A senhora me vê, sou magro, mas sou forte. O braço é fino, mas é duro. Tem muque que ninguém diz. ― E como eu sorrisse descrente: ― Depois, quem me vê assim pequeno, me dá oito ou nove anos; mas a verdade é que eu já tenho onze. Aliás, onze e cinco meses. Em pouco tempo estou com doze. E se me ofereço para carregar bolsa é porque preciso muito de ganhar dinheiro.

É claro que achei graça naquele homenzinho tão jovem, e já tão urgentemente precisado de pecúnia. Fome, via-se que não era. Se ele trazia em cima de si até do supérfluo: o boné americano, o cinto de matéria plástica. E a blusa de lã, a calça nova, o sapato bom, não falava de miséria. Para que seria o dinheiro? Cinema? Circo? Passeio de lotação à cidade, pela ponte nova? Mas logo me envergonhei da frivolidade da sugestão, quando vi os olhos sérios que me pôs o rapaz. Ora circo; ora cinema. Já fazia quase um ano que ele estava aqui e só tinha entrado no cinema uma vez. ― Minha tia me dá o dinheiro da entrada, pensa que eu vou; mas eu fico é do lado de fora, esperando a saída dos colegas. Eles então me contam a fita toda; é o mesmo que se eu tivesse entrado. Por gauchada, chegando em casa conto o filme, e minha tia jura que eu fui mesmo.... Assim, posso guardar o dinheiro sem ninguém desconfiar. Já encontrei quem quisesse comprar este boné, mas tive medo. Não vê que eu já tinha vendido o outro, contei que perdi.... Se vendesse, seria este o segundo perdido. Vendi também a bola de futebol... essa, contei que um garoto rasgou, de malvadez. E ultimamente me lembrei de carregar bolsa das moças, no mercadinho. Sempre faço um cruzeiro ou dois, por carreto. Têm algumas mais pães-duros que só dão quinhentos réis, mas assim mesmo serve. E riu: ― Caiu na rede é peixe. 

Naturalmente me pasmavam aqueles prodígios de astúcia e de economia. Mas a causa, a causa era o importante. Por que juntava ele o dinheiro com aquela ânsia?

― Estava juntando o dinheiro para uma passagem de avião. Daqui para Curitiba. De navio era mais barato, porém no Lóide não vendem passagem a menor. E no avião tinha um conhecido, já prometera, ― ia na agência com ele, contava que era sobrinho. Me garantiu que eu tendo o dinheiro ele vai comigo. A senhora vê, eu sou de Curitiba mesmo. Perdi minha mãe faz um ano. O pai desde pequenininho. E me mandaram para a casa dessa tia. Agora quero voltar. E como em casa não deixam, estou juntando o dinheiro para ir por minha conta.

Perguntei se a tia o maltratava. ― Não, a tia até que é muito boa. Senhora do Norte, casou com um irmão do meu pai. Gosta de mim, me pôs na escola, quer que eu ande direito; compra leite só pra mim, que para ela faz mal ao fígado...

Mas então por que diabo queria ele ir embora. O pequeno levantou os olhos teimosos: ― E por que eu havia de ficar aqui? Não sou daqui, sou? Sou de Curitiba. Aqui não me acostumo, o povo é diferente, até os brinquedos dos meninos são diferentes. Na escola não ensinam a mesma coisa. Lá eu já dava geografia da Europa, aqui estou na América do Sul toda a vida. Fazia conta de dividir, até fração. Aqui nunca me mandaram fazer fração. E, depois, lá eu conhecia as ruas, sabia o nome de todos os bondes e ônibus. E tem o dono de uma garagem que me prometeu o lugar de ajudante de chofer em caminhão interestadual. Vai a Londrina, São Paulo, Florianópolis e Porto Alegre.

― Mas menino, você não tem medo de se largar sozinho por este mundo tão grande?

Ele soltou uma risada e tornou a erguer os olhos claros, bonitos e audazes:

― Grande nada! O mundo é pequeno. Basta tomar um avião, vai-se a toda parte. Aqui, como diz meu tio, a gente não sai desta beirada de praia. E eu nasci para andar. Não foi para ser caixeiro de armarinho, como minha tia quer...

Apareceu um táxi. Antes de subir, tirei da bolsa uma nota de dez, pu-la na mão do rapaz. Era o mínimo com que poderia contribuir, depois das confidências. Ele agradeceu, puxou do bolso das calças uma carteirinha de celofane, enfiou a pelega entre outras, sorriu mais uma vez:

― Esta dorme comigo debaixo do travesseiro. A tia me deu um mealheiro, tem seis níqueis lá dentro.... Vê lá se eu acredito em mealheiro...

Guardou a carteira, arrancou o boné da cabeça, e saiu como uma flecha em direção de uma senhora idosa que atravessava o portão do mercado, tropeçando ao peso de duas bolsas abarrotada.

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