Rei morto, rei posto, ano velho, ano novo, complexo de saudade e esperança, — afinal debulhamos este inquieto 1947 e nos preparamos para enfrentar o 1948. E porque 1947 acabou e 1948 começa, soltamos foguetes, trocamos presentes e dançamos em réveillons, e brindamos a passagem do ano, porque — como é que diz o samba? “a esperança é a última que morre”. Sim, a alma é obstinada, não desiste dos seus desejos e não há desengano que os mate. Aliás, a função dos desenganos não é propriamente matar esperanças, mas desviá-las para outros caminhos. E até na hora da morte o homem ainda espera e deseja — a eternidade, a glória, a paz ou, quando o coração é por demais humilde ou descrente e não supõe que a glória tenha sido feita para si — pelo menos o bem supremo do sono e do esquecimento.
Sim, a esperança é a última que morre. E por isso mesmo, em cada ano que nasce, a gente a bem dizer se renova, muda pena como passarinho, ou muda o couro da alma, como cobra. Tal como na cobra ficam as manchas, mas a pele é nova, e dentro dela a criatura sente-se renovada igualmente. E afinal o lógico é em verdade esse renovamento. E o ilógico é o desgaste, a velhice. Ano novo deveria trazer vida nova. Para que queremos nós lembranças e cicatrizes?
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Segundo diz uma crença antiga, a primeira coisa que se faz na manhã do dia de ano bom será o que se há de fazer na maioria do ano novo. Por isso quando a gente era criança queria amanhecer o primeiro de janeiro passeando de bonde para poder passar o ano inteiro passeando também. Outros tomavam sorvete, outros andavam a cavalo. Pois criança persegue e procura a felicidade com aquela obstinada paixão autorizada pela Constituição americana, que, como se sabe, considera “the right of happiness” uma das finalidades precípuas da vida. E só em nome da felicidade futura consente a criança na escravização ao estudo, na aceitação da disciplina educativa, na suserania dos adultos, nas restrições infindáveis com que a cercam: sei de um garoto de sete anos que já tomou coitadinho bem uns dois litros de óleo de fígado de bacalhau, só para quando for grande ter força para ser maquinista do trem elétrico. Outros, para serem bombeiros ou choferes de praça — e alguns mais arrivistas até mesmo para serem doutores — quanto espinafre não comem, quanto café com leite não tomam, e fazem ginástica, sabe Deus a que não se submetem?
Crescendo, a gente fica mais rebelde, mas no fundo permanece aquele espírito de barganha característico da infância: aceitar isto para obter aquilo. E a crença firme de que se sacrificarmos várias coisas que prezamos ou nos são agradáveis — a preguiça, a guia, os amores, — teremos como compensação vários prêmios maravilhosos. Sem falar na suprema barganha da outra vida, por amor da qual tantos empenham totalmente tudo que nesta vida cá de baixo possa representar um valor.
Mas isto já são outras histórias. O essencial por hoje é escolher bem o que se há de fazer no primeiro do ano para fazê-lo depois o ano inteiro, de pleno direito. Eu, de mim, pretendo deitar na praia, fechar os olhos, esquecer do mundo; e assim os espíritos que presidem o ano novo hão de permitir em troca que, no correr de 1948, este insensato mundo se acabe sem a minha colaboração.