Foi em Náufragos que Erich Maria Remarque pela primeira vez contou em romance a história de uma determinada parcela da humanidade — o mundo dos homens sem passaporte. Agora, em Arco de Triunfo como que continua a história dessa gente, embora sejam outros os personagens que apresenta — judeus e alemães não judeus, expulsos de sua terra por motivo racial ou político, transformados numa variedade marginal da espécie humana, votada à extinção, porque para eles não existia nenhuma forma possível de sobrevivência entre os seus semelhantes. Criaturas sem papéis e sem carimbo de “visto”, entidade moderna e inconcebível outrora: – Os “apátridas”.
De certo modo foi esse o próprio drama pessoal de Remarque, também alemão, também adversário do nazismo e como tal expulso de sua terra. Salvou-o o renome de escritor, a estrondosa celebridade que lhe granjeou o primeiro livro, aquele famoso Nada de novo no front ocidental, a qual lhe garantiu entrada nos Estados Unidos.
Partindo-se do conceito de que é a pátria a nossa mãe comum, poder-se-ia definir o apátrida como uma espécie de órfão, já que pátria não tem. Mas seria engano: pois o apátrida nem sequer é um órfão. A orfandade supõe um nascimento e (aí é que está a sutileza diabólica daqueles que inventaram o homem sem passaporte, no século do passaporte e da burocracia) o apátrida é, oficialmente, aquele que não nasceu. Não se lhe alegam crimes, e pois não pode ser considerado criminoso — nesse caso teria pelo menos direito à cela e ao pão com água de todos os criminosos. O apátrida simplesmente não é, não existe. Não lhe adianta ter corpo, sangue, braços, coração, inteligência e até mesmo alma: tecnicamente ele não existe. E, quem não existe, claro que não tem nenhum direito a qualquer das coisas desta vida, tais como a terra, o ar, o trabalho, o alimento, que são, essencialmente, privilégio de quem vive. Não sendo vivente, também nem sequer é considerado morto, porque o morto pelo menos recebe o seu atestado de óbito, o que de certo modo é um documento legal, um papel, uma identificação. O apátrida é assim pois menos do que um defunto, — é o ar vacante, o não-nascido, o nada.
Sim, foi esta a mais terrível invenção do fascismo para castigo dos seus adversários. Jamais o homem conheceu coisa igual, mesmo nas idades mais negras. Que o banido dos outros séculos, embora expulso da sua comunidade, tinha sempre a perspectiva de encontrar asilo em terra alheia, nem que fosse na selva ou no deserto, lá “onde se usa toda a feridade”. E à medida que o mundo foi se alargando, aumentaram as suas possibilidades, — tinha a Amazônia, o Canadá, a África, a Patagônia, a Austrália, a Índia. Mas de súbito o mundo minguou singularmente, e já não há floresta javanesa nem tundra glacial onde não cheguem soldados e funcionários de emigração; e o homem dito “apátrida”, depois de verificar que não existe fronteira de onde não o expulsem, chega afinal à atônita conclusão de que não há em todo o planeta um único lugar onde possa pôr o pé.
Até pouco tempo, a expressão maior de abjeção humana era o pária, o “intocável” hindu; quando se queria falar de alguém que descera tanto na escala social que já não se sabia se era gente ou se era bicho, dizia-se que era “um pária”. Hoje, o conceito de pária reabilitou-se. Porque o pária, afinal de contas, tinha direito ao seu casebre e à sua gamela, ao degrau de templo onde pedisse esmola e se aquecesse ao sol, ao pedaço de chão onde projetasse a sua sombra imunda. E ao homem sem passaporte não lhe resta sequer o direito de ter sombra...
A história de Arco de Triunfo acaba precisamente em 1939, com o desencadear da guerra. Seria curioso que Remarque neste mesmo livro ou em outro que lhe servisse de continuação, houvesse levado adiante a narrativa, e explicasse o destino que tiveram os seus heróis após a vitória dos aliados. Porque, ganha a guerra, parece que os ex-cidadãos alemães de origem dita “ariana” recuperaram a nacionalidade e o direito de voltarem ao solo devastado do que foi antes o Grande Reich. Mas, e os judeus? Esses continuaram o seu fado, para eles ainda não acabou a dramática rotina — o campo de concentração (perdão, agora se chama “campo de deslocados”), o navio de emigrantes clandestinos, a luta com as autoridades de fronteira, a prisão, a deportação, a vida sem passaporte.
Por que isso? Se o martírio dos judeus foi um dos maiores crimes do nazismo, porque continuam os vencedores a obra dos criminosos? Ninguém sabe — ou será que se sabe?
Mesquinha paz conquistamos, embora tão cara a pagássemos; sobressaltada e incompreensível, continua um rosário de mistérios, cada qual mais obscuro e cada qual mais assustador.