A gente anda de automóvel, de avião, de trem. O ângulo de visão varia, mas a paisagem é sempre a mesma: as imensas extensões de terra devastada, erodida, vermelha, os morros que parecem cocos secos descascados, ― o local onde alguns anos antes se viu uma mata fechada, transformado em deserto. Aquelas belíssimas florestas de pinheiros do Paraná a que estarão reduzidas? E os pinheiros do Paraná não são os mais sofredores, porque dizem que as companhias exploradoras da madeira obedecem a lei e replantam.

Recordo as margens do Rio Doce. Tinham me prometido florestas maravilhosas, mataria quase amazônica. Chega-se lá pela Rio-Bahia (aliás pela ex-Rio-Bahia, que essa estrada é hoje apenas uma recordação do que poderia ter sido e que não é), chega-se lá e o que se encontra são as eternas rocinhas de milho magro, plantado com o caco da enxada, no meio do rescaldo e dos troncos encarvoados das coivaras. Pode ter mata longe, lá além, rio abaixo ou rio acima. Mas perto de gente, perto de povo, o fogo e o machado devoraram tudo.

E as matas de Goiás, ― aquele mato grosso de que tanto me falavam entre Goiás Velho e Goiânia ― que é dele? Parece que também o fogo comeu.

Isso para falar nas velhas reservas florestais mais recuadas dos centros urbanos. Porque junto às grandes cidades, a lembrança de alguma mata já se perde na história, virou folclore. Cidade nenhuma tem o seu bosque, a sua floresta plantada ou preservada. Ou as têm muito poucas. Goiânia reservou algumas tarefas de mata primitiva, que nem sei se estarão sendo respeitadas. Gostaria de saber se ainda vive o velho “bosque” de Belém do Pará. Fortaleza, Recife, Maceió, Teresina, Natal, pelo que tenho visto até nas ruas são parcas de árvores e nos jardins públicos exibem canteiros à francesa e bichinhos de fícus. Nem vi florestas municipais em Santos, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre. Se as há, não me mostraram.

Entende-se que a mata bruta, a mata virgem, a chamada floresta tropical, tenha que ser abatida para que a civilização penetre através dela. Entende-se que só se possa plantar café no norte do Paraná derrubando primeiro a mata. Entende-se que alguns milhões de árvores precisassem vir abaixo para que os tratores abrissem a picada da Belém-Brasília. Mas o que não se entende e não se justifica, o que devia ser punido quando não pode ser remediado, é o abatimento sistemático dos restos de reserva florestal, dentro das zonas já civilizadas, já habitadas.

No Brasil ― parece incrível ― mas ainda se faz siderurgia queimando carvão vegetal. No Brasil ainda existem muitas estradas de ferro cujo combustível é madeira. E mesmo nas estradas em que rodam locomotivas movidas a óleo diesel, o grosso das composições que nelas correm é movida a lenha. E muitas, inúmeras usinas de luz, queimam carvão vegetal. Para não falar no desgaste tremendo provocado pelas indústrias de papel e de madeira propriamente dita.

Alguém replanta as matas de Minas devoradas pelas pequenas indústrias de ferro? Podem os responsáveis dizer que sim, mas os nossos olhos dizem que não. As extensões devastadas são cada vez maiores e os bosques de replantio, esses, ninguém os vê. O vale do Paraíba é a abominação da desolação. A tal ponto que qualquer mirrado bosquezinho de eucaliptos parece a quem o alcança quase uma floresta encantada. No estado do Rio, a impressão que fica no viajante é que o fogo varreu toda a velha província. Porque além da devastação sistemática em busca de madeira e lenha, além do estúpido desmatamento provocado pela “indústria” dos loteamentos, ao lado desse desflorestamento criminoso, mas afinal de contas utilitário, existe ainda outro, nascido da ignorância, do desleixo, da lei do menor esforço: a queimada. Fogo para limpar os roçados onde o arado não entra. Fogo para que rebrote o pasto.

Fogo nas brocas da mata, fogo que não se pode circunscrever a um trecho restrito, e qualquer descuido espalha por léguas de mata, já tão surrada pelo machado, coitadinha.

Mas é no Nordeste, onde, em todo o Brasil, se faz mais sentir a desgraça do desmatamento. Nas escassas matas de catinga, tira-se madeira para tudo: para a lenha dos trens e das usinas, para os dormentes dos trilhos, para as casas de taipa, para as léguas infindáveis de cercas; o Ceará todo, onde domina a pequena propriedade, é um emaranhado de cercas de madeira ― cercas de entranço, de faxina, de pau-a-pique, de estacote ―  que o arame, caríssimo, é inacessível à gente da região. E ninguém planta uma árvore, para substituir os milhões que se derrubam anualmente. A catinga já desaparece, fica só o marmeleiral ralo, e nas serras, antigos oásis de verde, a devastação já chegou e já comeu. A Serra de Baturité, paraíso da montanha erguido entre a praia e o sertão, está hoje desolada, os seus mananciais secos, os seus pomares, os seus roçados de café morrendo, até o seu clima alterado. A Serra Azul em cujas matas fechadas ainda havia, há trinta anos, macacos e onças, e paus-d’arco gigantescos, e olhos-d’água manando ― hoje é um amontoado de morros pedregosos. A Serra do Estêvão, outro pequeno tesouro à ilharga de Quixadá, tenho notícias dela nas páginas do último romance de um grande escritor brasileiro, Jáder de Carvalho: “A serra está morrendo. Queimaram-se as matas. O solo é uma cabeça raspada a navalha”...

Sei de um fazendeiro que bota abaixo as suas matas, com esta alegação singular: “Eu não tenho amor a pé de pau”. Pois aí é que está a questão; é preciso que o brasileiro crie amor a pé de pau. Não com lei, mas com educação, com exemplo, se ensine a todos a necessidade da vida vegetal para garantir a sobrevivência de todos nós, animais racionais e irracionais.

Havia um parente meu, velho sertanejo, que vivia com os bolsos cheios de sementes e, nas suas andadas pela fazenda, a todo instante plantava um caroço à beira dos caminhos e veredas. O povo ria, chamava-o de doido.

Faz anos, já, que ele morreu. E nos caminhos por onde andava as sementes nasceram; e são tão sombreados, que agora o povo diz outra coisa: que as árvores brotaram dos rastros de um santo.

rachel-de-queiroz
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