18 jun 1960

Aventuras de mãe e filha (I)

 A história é meio complicada, e esta revista é para famílias. Vamos ver se fazemos um resumo expurgado ― embora a simples palavra “expurgado” já seja capaz de tirar todo o gosto do leitor, muito mais atento ao “impróprio” do que ao “próprio”. Pois versão expurgada quer dizer roubada do elemento picante que lhe daria interesse, deixando apenas o sensaborão ― como ensopadinho de chuchu sem pimenta. Então, não vamos dar versão expurgada. Contemos tudo, embora com os devidos circunlóquios. Pensando bem, quem for tão sabido que assim mesmo entenda, não estará aprendendo nada aqui. E quem é inocente mesmo, não entende e não aprende, pronto.

Também não pensem vocês que vamos narrar aqui alguma horrível tragédia de sexo, com édipos e jocastas se debatendo entre cruéis sentenças do destino. O veneno neste caso é mais sutil. E os vínculos em causa não são de sangue ― serão quando muito por afinidade ― os que, em língua inglesa, se chamam in-law, e cuja correspondência em português não encontro exata. Ou será “afim”, mesmo?

Eu ia dizendo também neste exórdio que um dos méritos do caso é ser verídico. Tolice minha. Como se fosse mérito um caso contado em papel ser verídico. Depois de escrita, a história vale pelo que parece e não pelo que foi.

Bem, o fato é que, com mérito ou sem mérito, o caso aconteceu mesmo. E foi aqui na cidade, num hoje obsoleto prédio de apartamentos na rua das Laranjeiras, desses inaugurados logo que começou a era dos arranha-céus, aos primeiros anos da década de 30. Aconteceu que, nos meados dessa década, foram morar num dos apartamentos do prédio uma senhora e sua filha; sendo que a mãe estreava não só a nova moda residencial de moradia em edifícios coletivos, como também uma nova moda social, e se dizia divorciada. Até então, mulher sem marido se dizia apenas “separada”. Lá no Norte falavam mais duramente: “largada”. Nem mesmo “desquitada” se costumava dizer ― a palavra era considerada impolida, dura, pejorativa. Divorciado ou divorciada era coisa que só se conhecia de romance ou de cinema. Ou de peça francesa ― outra coisa em moda, então, e que mais tarde caiu também.

A mãe teria, nesse tempo, os seus trinta e seis anos; a menina dezessete. Ambas bonitas, a mãe pequena e alourada, a filha maior, morena, de olhos muito escuros ―  uma beleza dramática, se assim se pode dizer. A mãe era funcionária federal ― e quase posso dizer que ela, nisso, inaugurava mais uma moda ― a das Maria Candelária. Creio, porém, que as Maria Candelária vieram depois, com os altos ordenados. Dona Orminda ― era assim que se chamava ― vivia mais das rendas de uma pequena vila de casas no subúrbio; o ordenado da repartição era uma achega para ajudar nos estudos da filha ― aulas de inglês, piano (outra moda que passou) e até, Deus que me perdoe, declamação. Sim, por incrível que pareça, ainda há poucos anos atrás, ensinava-se declamação às raparigas, como hoje se ensina decoração ou cerâmica.

No mesmo andar ― que era o quinto ― e onde se instalaram mãe e filha, foram morar também, no apartamento de fundos, dois rapazes. Ambos gaúchos, trazidos pela onda getulista que inundou o Rio com o movimento de 30. Um dos moços era grande, louro, muito simpático; o outro, baixo, azeitonado, de peito largo e aspecto desses que convencionalmente se diz “de marinheiro”; era, entretanto, gaúcho de fronteira, jamais vira o mar muito de perto, batizara-se por Manuel, mas era chamado de Manolo.

Nesse tempo, a palavra “vizinho”, embora apenas de apartamento, ainda tinha sentido. E os dois rapazes sós, morando pegado às duas mulheres sós, tinham que se conhecer e se ajudar uns aos outros.

Começou com um prego de luz elétrica; ― coisa simples, queimou o fusível. O zelador não estava, e o vizinho, o louro, com cara de alemão (não era alemão propriamente, mas nativo de Novo Hamburgo, e tinha o nome de Helmut), pôs um arame em lugar do fusível queimado, como então se fazia, e não foi preciso esperar pela Light. Depois Manolo, que trabalhava num frigorífico, como não tinha geladeira em casa, veio pedir a D. Orminda que lhe guardasse uns filés no gelo. E na hora de receber os bifes, saiu muita brincadeira, procurando ele pagar com mignon o aluguel do espaço na geladeira, elas se oferecendo para lhe fazerem o churrasco em casa ― essas coisas entre vizinhos dos dois sexos, que sempre acontecem. Coisas que sempre também acabam em amor, como se verá na semana seguinte.

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