2 jul 1960

Aventuras de mãe e filha (III)

Sim, um caminhão de cerveja destruiu toda aquela felicidade. O caminhão vinha pela avenida Rio Branco, avançou o sinal na rua Visconde de Inhaúma, e atropelou o desditoso Manolo que atravessava o asfalto. Fraturou-lhe o crânio e a bacia, mas assim mesmo ele ainda sobreviveu cinco dias, no pronto-socorro. E foi justamente nessa fase dramática de espera da morte que Sônia sofreu a segunda desgraça da sua vida, só comparável ― ou maior ― à desgraça da perda do marido.

Foi na manhã do terceiro dia, depois do atropelamento. Sônia saíra para trocar de roupa; e quando foi entrando de volta no quarto, bem sutil, para não incomodar o enfermo, viu que sua mãe já lá estava. Sentada na cadeira ao pé do leito, D. Orminda curvava a cabeça sobre o colchão. Sônia aproximou-se mais com o coração na boca, ―  quem sabe Manolo piorara, estava morrendo. Mas não ― o rosto do marido continuava na mesma, imóvel, inconsciente. A mão dele largada, em cima do lençol, e, com os ombros sacudidos de soluços, D. Orminda inclinava o rosto sobre aquela mão.

Sônia estacou, abrupta. Bem, a princípio não lhe pareceu nada ― a mãe, o genro, ― genro é como um filho. Sônia chegou mais perto, contendo a respiração, já então espiando. A mão de Manolo estava aberta, de palma para cima, e sobre aquela palma horrivelmente descorada, D. Orminda apertava os lábios chorando, abandonada.

Sentindo afinal a presença da filha, D. Orminda ergueu a cabeça e o olhar das duas se cruzou. Não se disseram nada. D. Orminda se ergueu lentamente, dirigiu-se à janela e, de costas para o quarto, ficou a enxugar os olhos. Sônia sentia-se tão chocada, muda, tonta que não poderia dizer nada ― não se lembrava sequer se tinha voz. Aos poucos é que a surpresa foi fugindo, o choque ― e em seu lugar chegavam a angústia, a cólera ― e, acima de tudo, o medo. Aquele beijo na palma da mão, tão íntimo... Minha Nossa Senhora! Fitou o doente, comatoso, imóvel como um defunto. O nariz afilado, os lábios sem sangue, os olhos encobertos pelas pálpebras violáceas. A mão, que a mãe dela beijara, ainda estava atirada na mesma posição e, como para lhe mostrar que aquilo não fora um sonho, um engano, via-se um traço leve de batom sobre a palma descorada, aberta contra o lençol.

Dois dias depois Manolo morreu.

Na tarde seguinte ao enterro Sônia estava no quarto; tirava da cômoda as roupas do marido e as ia arrumando numa mala, quando D. Orminda entrou. Sônia virou-se rápida ao escutar os passos da mãe, e novamente os olhares das duas se cruzaram. Vendo a filha que a fitava assim com aqueles olhos duros, D. Orminda falou com timidez:

― Você não quer que eu tome conta disso? Por que não vai se deitar?

A moça largou no tapete o pijama que tinha na mão, levantou-se, sem tirar a vista do rosto pálido da mãe. Ficou um instante largo a olhá-la assim, intensamente. Por fim perguntou:

― Que é que ele era para a senhora, mamãe?

D. Orminda estremeceu:

― Que era o quê? Não entendo o que está perguntando! Acho que o choque lhe abalou os nervos!

Sônia queria prosseguir, invectivar a mãe ― não teve coragem. Há coisas que a gente não pode falar. Pensa-se, tem-se horror, mas falar mesmo, botar em palavras, ― é como lhe dar uma realidade positiva, uma presença palpável ― impossível.

 *

O lógico era que depois disso se separassem as duas. Mas onde se viu lógica governando a vida, neste mundo? Continuaram morando juntas. Apenas Sônia exigiu mudarem-se para Copacabana.

D. Orminda foi emagrecendo, diminuindo, enrugando ― e é hoje uma velhinha seca, dura, de pouca fala; só conserva do tempo antigo o olhar ardente, e assim mesmo de raro em raro o mostra, num lampejo curto. Habitualmente traz os olhos baixos, severos. E no momento daquele clarão fugitivo, Sônia quase sempre recorda a sua angústia, a sua pergunta, ― que terá a mãe enterrado dentro do caixão de Manolo? Que lembranças, que saudades? Dá-lhe uma dor funda no peito e ela obriga o pensamento a mudar de assunto. Sempre bela, caiu naquela vida meio marginal, um pouco artista, um pouco boêmia ― homens, casos, noitadas, viagens. Às vezes, quando está meio alta, diz que se sente um verdadeiro personagem de Machado de Assis. E quando o acompanhante, atentando no seu tipo dramático, faz qualquer alusão à “cigana oblíqua e dissimulada” ela se impacienta:

— Não, Capitu, não. O que eu sou é o Bentinho. O D. Casmurro. ― Depois se fecha num silêncio obstinado. E o acompanhante fica dizendo que é mesmo, que parece ― que realmente Sônia tem o vinho casmurro..

rachel-de-queiroz
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