Seria realmente uma lady? Ela, pelo menos, como tal se imaginava, porque durante todo o conflito não parou de vociferar “Atrevido! Isso é jeito de tratar uma senhora”? Mas o problema é justamente esse: onde começa e onde acaba uma lady? Ou antes: até onde pode ir legitimamente uma senhora na defesa do seu pundonor ofendido?

O caso foi assim: a moça de vestido azul com manga japonesa ia passando na calçada, garbosa como uma fragata. O homem cravou-lhe um olhar e logo depois cravou-lhe o verbo. E cravou-o de maneira por demais ardente, porque a moça sem hesitar ergueu o guarda-chuva e o meteu pela cara do galante. Não sei o que pensou o homem: o fato é que com a mesma rapidez e expressão com que traduzira o seu lirismo, traduziu a sua mudança de sentimentos: arrebatou o guarda-chuva e duas vezes com ele flagelou a deusa. O dono do botequim — pois tudo se passou na porta do botequim — o dono do botequim — e esse é indiscutivelmente um cavalheiro — vendo a dama aos gritos, pediu-lhe que tivesse calma, entrasse um pouquinho, se sentasse, tomasse um copo d’água. Mas aí o outro gentleman, que ainda não serenara (pois talvez fosse a primeira vez em que tinha oportunidade de bater em mulher), falou audivelmente: “Quem com ferro fere, com ferro será ferido”! A lady, que já se sentara, achou aquilo a última gota, e jogou o copo d’água na cara do atrevido. Aconteceu que o alvejado encolheu-se e o copo foi se espatifar de encontro ao espelho do fundo. Vendo o dono do botequim assim tão mal-empregado o seu refrigerante, e tão irremediavelmente danificado aquele cristal de Veneza que era a glória do seu estabelecimento, passou-se para os lados do galã e xingou a moça de megera. E foi aí que apareceu o guarda. — Seria da mais comezinha justiça que a autoridade não distinguisse entre os beligerantes e os considerasse a todos igualmente culpados no conflito. O guarda, porém, só ouviu o “megera” e logo opinou que megera ela não era. E repetiu a frase feminil: “Seu atrevido! Como é que diz isso a uma senhora”! Pobre guarda: era vítima de uma figura de retórica que se chama metonímia e que consiste em se tomar o continente pelo conteúdo: se aquela alma não era senhoril, o seu invólucro o era, e quanto! Como de senhora eram as palavras que ela lhe endereçou, subitamente sofredora e afável: “Senhor guarda, me ponho sob a sua proteção. Veja que cena horrível”! — O guarda concordou que era horrível e num derradeiro escárnio do destino, serviu-se do próprio telefone do botequim para chamar o carro-de-presos.

A bela saiu do distrito triunfante e de braço com o guarda. O botequineiro teve de ouvir um sermão do comissário, além do prejuízo do seu espelho quebrado; o malfadado galã passou a noite no xadrez.

Agora direis que isso foi apenas mais um dos dramas da vida; e estareis crassamente enganados porque não foi só um drama, foi um símbolo de como anda desnorteada esta complexa vida moderna. Caídas as barreiras que dantes tão rigidamente separavam cavalheiros e damas, já não se sabe mais até onde ir. Há 15 ou 20 anos atrás, a heroína deste caso nem dama se chamaria — ou se dama se chamasse, seria com o complemento de outra palavra, e se diria mulher-dama. Hoje, porém, antes de qualquer definição, precisamos esclarecer um ponto essencial: tem a mulher moderna o direito e a obrigação de vindicar à mão armada o seu pudor ofendido por um galanteio não solicitado? Dantes sempre havia um pai, um marido, um irmão, um primo, que impunha respeito e afastava importunos. Mas a livre mulher da era atômica, sem chaperon nem vingador, deve passar surda e muda pelas calçadas, como um lírio entre lobos, ou defender-se como Valquíria entre chacais? Retrucar na altura ou não ver, não sentir, não escutar o atrevido, como se ele fosse transparente, inodoro e inaudível?

Nesta interrogação, como em muitas outras do mundo moderno, está um dos focos da nossa inquietação. Por causa dele dividem-se os homens e insultam-se reciprocamente as mulheres. Porque uns, ou como o botequineiro, opinam pela segunda solução, ou como o guarda, opinam pela primeira.

A verdade é que nenhuma dessas fórmulas satisfaz inteiramente as mulheres. Não lhes agrada ser a pálida açucena, com direito a sentar nos ônibus e a cheirar o seu vidro de sais, como não lhes agrada este mundo de livre concorrência no qual mulher e homem disputam o seu lugar ao sol com iguais privilégios e oportunidades. O que elas queriam o que todas nós queríamos — sim, todas nós! era a revivescência daquela amena e perdida forma de organização social que se chamava matriarcado: um mundo em que nós é que fôssemos as fortes, nós que tivéssemos o dinheiro, nós que oprimíssemos, nós que engordássemos, nós que escolhêssemos, nós que repudiássemos. Mundo em que o homem, temente de Deus e da esposa, conhecesse o seu lugar. E o seu lugar poderia muito bem ser definido por um dito da sabedoria popular da minha terra: o do primeiro que apanha e o derradeiro que come...

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