Vieram outro dia à nossa casa duas moças, sobraçando pastas de recortes, álbuns de fotografias: eram a vice-diretora e uma patronesse da “Biblioteca Infantil Carlos Alberto”, com sede à rua Rio Grande do Sul, 83-A — no Méier sim, o Méier, capital dos subúrbios do Distrito Federal.
Contaram-me as moças a história da iniciativa. Havia no Méier um casal que perdeu o seu filho pequenino. E no meio da dor sem consolo, naquele naufrágio de esperanças, pai e mãe orfanados quiseram fazer qualquer coisa a fim de perpetuar a lembrança amada do menino que foi embora sem tempo para deixar sua marca no mundo em que viveu tão pouco. Há muitas maneiras de homenagear um morto. Uns fazem túmulos de mármore, outros de bronze, outros escrevem livros de versos. Há os que fundam hospitais, o que é uma boa ideia, outros que até se suicidam, numa espécie de imolação niilista. Os pais do pequeno Carlos Alberto escolheram das homenagens talvez a melhor: fundaram essa biblioteca, especializada em livros infantis, destinada a servir gratuitamente o desejo de leitura e instrução dos meninos daquela zona.
Cidade de crianças abandonadas, verdadeiro cemitério de inocentes, o Rio de Janeiro é um inimigo da infância. Megera, madrasta, não sei que nomes lhe ponha à nossa cidade, quando penso na criançada das favelas, quando penso em todo o abandono, quando penso em toda a negra miséria que acompanha como um anjo mau as pobres crianças cariocas. Pobres e ricas; que as ricas também têm o seu mau quinhão, vendo abertas diante de si as portas das diversões mais proibidas, tendo à sua mercê a safra imensa das perversoras “histórias de quadrinhos”; vivendo engaioladas em apartamentos “de luxo”, sem sol, sem chão, sem uma folha de grama, sem jamais possuírem um cachorro ou um passarinho. E se é assim com as ricas, das pobres que se dirá então? Como na letra do samba, o menos que se pode dizer é que vivem de teimosas. Maltrapilhas, abandonadas, fazem parte do lixo da cidade grande, crescem em promiscuidade com os bichos do lixo — e não se pode alegar a respeito delas o que se falou a respeito das crianças ricas: essas têm companheiros no reino das aves e dos cães: os urubus de monturo, os cães vadios que a carrocinha não apanhou...
E pensando nas nossas tristes crianças, não podemos deixar de receber batendo palmas iniciativas da espécie dessa Biblioteca Infantil do Méier. Dar livros para que os meninos leiam. Livros inocentes, livros decentes, livros sadios; Lobato, Jules Verne, Jack London; ou Grimm, ou Pérrault, ou Andersen, ou Lúcia Machado; livros que não sejam imagens gráficas de assassinos, ladrões de bancos e sereias despidas, — feitas para semianalfabetos, pois como “leitura” exigem apenas o esforço mínimo de decifrar uma legenda curta em capitais. O resto a figura é que diz e como o diz! O realismo impressionante dos desenhistas de quadrinhos jamais desfalece ou recua, seja numa cena de tortura, nos requintes de um assassino chinês, nos detalhes plásticos de um ato de sedução.
Livros, com páginas impressas com letras, com histórias contadas por palavras. Livros, não folhetins de cordel.
A Biblioteca acolhe as crianças que lá desejarem ler. A Biblioteca empresta os livros às crianças que têm casa onde os possam ler. Tão simples a ideia. E tão útil, tão generosa.
Senhores e senhoras, sigamos esse exemplo. Prestigiemos essa Biblioteca Infantil e todas as suas congêneres, já fundadas ou por fundar. Auxiliemos a fundação de outras bibliotecas infantis por toda a nossa vastíssima federação de analfabetos. Formemos pequenos clubes de leitura entre as crianças da nossa rua, ensinemo-los a saber ler, a gostar de ler, que é talvez mais importante do que simplesmente “aprender a ler”.
Imitemos o Méier, ajudemos o Méier. Quanto menino desgraçado, abandonado, incompreendido, pode se transformar num menino feliz pela simples mágica de um livro de histórias!
O pequenino Carlos Alberto morreu sem ter tempo de aprender a ler. Morreu com um ano e meio, coitadinho; mas esse curto ano e meio de vida pelo rastro que deixou atrás, é infinitamente mais fecundo que a vida longa e inútil de muito velho que morre aos 80.