Quando se fala em atravessar o Brasil vindo do Rio até o Nordeste, os amigos se assustam com a aventura extravagante. 2.700 quilômetros pelo mapa, 3.000 pelo velocímetro, isso tudo em estrada de pau-de-arara, é loucura!
Mas com surpresa o viajante verifica que a estrada Rio-Bahia (cujo prefixo é BR-4) e a Transnordestina, ou BR-13, são, em verdade, bem melhores que muitas das rodovias nossas conhecidas do Sul; mormente quando a gente recorda aquelas perigosas estradas de serra, em Santa Catarina e no Paraná, subindo ladeira, descendo ladeira, costeando precipícios e tão estreitas que dentro delas tem-se a impressão de que mal cabe o automóvel, quanto mais dois caminhões em cruzamento. E, no entanto, cruzam, o que é espantoso. Creio que os melhores motoristas do mundo são os que fazem aquele percurso, com especialidade a subida da Serra da Atafona, que jamais esquecerei.
A Rio-Bahia tem os seus trechos bem mal tratados. Alguns muito ruins, como o que vai de Itaobim, a cidade-morta de Medina, ainda em Minas. Mas, no geral, a média é sempre de razoável para boa, de vez em quando muito boa.
Contudo, a maior surpresa não é propriamente a estrada; são as cidades que ela serve, inesperadas de grandes, e adiantadas, e populosas. Crescem como cidades do litoral, com cinema novo, comércio rico, ruas bem calçadas, praças de jardim e, melhor que tudo, uma quase completa ausência de favelas. Muriaé, Caratinga, Governador Valadares, Teófilo Otoni são melhores que algumas capitais de beira de praia. Sólidas cidades de Minas que não têm, talvez, o arrojo das paulistas e paranaenses, mas, talvez, tenham mais substância. Sabe mineiro como é: quem vê a casa não vê a burra…
Depois entra-se na Bahia, a nos receber nas ruas abertas de Vitória da Conquista, que não tem de bonito só o nome, é bonita por si também, e, sendo cidade progressista, não perdeu embora o pitoresco e o romance do sertão. Se na feira vendem as infalíveis quinquilharias de matéria plástica, as panelas de alumínio, há também os estendais de louça de barro, os montes coloridos de redes, os jalecos de couro, as bolsas de palha, os chapéus de vaqueiro, os arreios bordados, os montes de jerimum, de batata-doce e milho verde.
Além de Conquista, Jequié é outro marco adiantado, também grande, também cheia de vida e movimento. Nessas cidades todas, aliás no Brasil todo, só há mesmo uma praga infalível, o grande mal do progresso; os diabólicos alto-falantes, pendurados nos postes, escondidos nas árvores, desrespeitando as igrejas, berrando, uivando, estragando a vida, cantando sambas em discos fanhosos, anunciando velhas bebidas, honestos produtos do sertão que até perdem a dignidade, gritados com semelhante falta de compostura, tão mal cabida junto à dignidade natural do sertanejo.
Passada Feira de Santana, que é, na verdade, a capital do sertão baiano, sai-se da BR-4 e entra-se na BR-13, e aí estamos no verdadeiro sertão de Euclides, o sertão do Conselheiro, bravio e seco. Desaparecem os pomares, os vendedores das laranjas de umbigo, desaparecem as casas-grandes de fazenda e até mesmo os belos roçados que nos vinham acompanhando desde Minas. Quando muito, se veem plantações de sisal, com suas pontas agressivas como espadas, ou as tristes palmatórias, espinhando por trás das cercas. O gado muda, já não se encontram os magotes de vacas de raça, volta o reino do pé-duro, ou os franzinos mestiços degenerados de zebu, cujos bezerros são tão pequenos que até parecem cachorros.
Até chegar às margens do São Francisco, é aquela aspereza de deserto. Embora aquelas terras agrestes nos arranquem do peito uma estranha ternura. E também há a lembrança da gente que penou e morreu por ali, do sofrimento, da valentia e do sangue derramado.
Ao pé de um grupo cerrado de colinas serpeia o Vaza-Barris. Lá em cima foi o arraial de Canudos, que ainda hoje Canudos se chama. A estrada abre uma brecha na fortaleza natural, encontra a vila desolada. Do tempo do Conselho nada mais resta, senão um cruzeiro de pau. Mas as casas novas têm um ar fatigado e sem idade, parecem contemporâneas da guerra, as mesmas que assistiram aos tiroteios. O chão é de um vermelho violento, será o sangue dos romeiros que o tingiu para sempre? A casa de pensão, entretanto, é alegre e clara, a moça nos serve carne-seca com arroz e doce de leite, a água de chuva da quartinha é fresca como orvalho, o quarto dá janelas para o jardim sombrio de jasmineiros, tinhorões, rosas de cacho e cravinas. Porque o sertão é assim: no meio do deserto, entre a caatinga feia, que só dá jurema e xiquexique, você plantando e aguando, perdendo o amor da água que carregou de longe, vê rebentar um canteiro ao seu redor, verde, violento, de tão cheiroso. É o mesmo milagre dos oásis, nos desertos das outras terras. Parece que a natureza desprezada exagera, sem saber como pagar, de tão amorosa, a quem lhe deu um pouco de carinho.
E por cima do pedregulho, entre a caatinga, a gente vai até alcançar o rio, nosso pai São Francisco. Mas é outra história, para a semana que vem.