Quem já foi ao jardim zoológico da Quinta da Boa Vista decerto não perdeu de ver o antro das cobras grandes, muito luxuoso e em estilo impressionista, com tanque de forma irregular em cujo fundo limoso as sucuris se escondem para a sesta, os gramados e canteiros onde as jiboias passeiam, as palmeiras e uma pequena árvore seca nas quais as cobras de veado se trepam e ficam aquentando ao sol, e o profundo fosso que separa as pensionistas da curiosidade meio importuna dos visitantes.

O que não sei se todos os frequentadores tiveram oportunidade de assistir foi a alimentação das cobras, espetáculo bastante cruel e desagradável para quem não é cobra de nascença ou de gênio.

Porque a comida das cobras são coelhos vivos jogados pelos guardas dentro do recinto, mas jogados com malícia e fingimento, antes depostos no gramado, como se a intenção dos guardas fosse apenas proporcionar aos bichinhos o belo pasto daquela grama verde. E os tristes animaizinhos de capoeira que naturalmente jamais dispuseram de um canteiro de erva só para eles, criados na economia da magra ração pesada e medida a centavo chorado, vendo-se de chofre naquele paraíso grátis, nem acreditam direito. Espiam de longe, recuam, franzem o nariz, cheiram as folhas, hesitam, e de repente se convencem da inaudita realidade, e se atiram a comer num desadoro de quem nunca se fartou antes. A princípio comem indiscriminadamente, desbragadamente; à medida, porém, que se fartam, passam a escolher melhor, andam uns dois metros, aos saltinhos, já gourmets, em caça do broto mais tenro, da folha mais cheirosa. Abanam as orelhas, fungam para o sol; e afinal, refartos, escolhem uma praiazinha de areia clara à beira d’água e vão descansar ou — trocadilho de muito mau gosto, dadas as circunstâncias —vão jiboiar o almoço.

Enquanto se desenrola esse idílio, de cobra não se vê nem sinal. Parece que elas sentem prazer em deixar que os bichinhos aproveitem um pouco de liberdade ou de fartura. Ou quem sabe se carne de coelho aperreado lhes faça mal à digestão. Ou, ainda, talvez desejem que eles se sintam em segurança para gozarem mais completo o prazer do esporte. Ficam lá do alto, dependuradas como lianas do tronco seco, ou afundadas na água verde, ou coleando de mansinho à beira do fosso.

Fossem os coelhos bichos silvestres, acostumados a se defender dos perigos naturais, claro que não se atirariam à grama com aquele descuido. O faro, o ouvido, ou qualquer que seja o sentido que costuma avisar coelhos em perigo, haveria de preveni-los da sorte medonha que contra eles se embosca na água e nos pés de pau. Mas bichinhos de capoeira, como já se se disse acima, irmãos de criação de frangos e marrecos, sabem lá o que é perigo, sabem lá o que é cobra. Capaz de nem acreditarem que cobra existe, considerarem-nas animais fabulosos de folclore, iguais à serpente marinha. Ainda mesmo vendo a bicha que se aproxima, rastejando, talvez duvidem.

E, pois, só quando afinal de estômago cheio os coelhinhos repousam, é que as cobras, de uma em uma, vão iniciando o horrendo esporte. Devagar, aos coleios, às negaças. Cada uma escolhe o seu, e sem pressa, até com preguiça, certa de que a presa não escapa, vai chegando para perto, enquanto o bichinho, inocentemente, pisca os olhos para a luz. E de repente a fera cilíndrica que ainda há pouco parecia tão lerda, enrola-se, oscila a cabeça no ar como uma naja bailarina ouvindo flauta, e num sarilho cegante, num bote tão certeiro e rápido que a gente nem sabe como foi, empolga o coelho e o leva consigo. Daí... não, não entro mais em detalhes; não sei de nada tão obsceno e repulsivo quanto o sistema de comer de uma cobra.

O curioso é a indiferença dos coelhos que sobram em relação ao companheiro sacrificado. É como se o não conhecessem, como se jamais cobra houvesse andado por ali. E de um em um vão desaparecendo, de uma em uma as serpentes saciadas vão se alapando, com um [ilegível] de coelho no meio do corpo, — até que só fica o último — e assim o último continua estúpido como os primeiros, pastando muito de seu os rebentões de grama, quem sabe até se alegre porque tem todo aquele jardim só para si, e certo naturalmente que a ele, o imortal, o fabuloso, o coelho de sorte, não tem perigo que alcance.

Porém mal acaba de pensar esse pensamento, lá vem a derradeira cobra, mais preguiçosa ou mais fastienta que deixara o almoço para depois e que afinal se resolve se chega e dá o seu bote; e aí fica o fosso sem coelhos até que no outro dia de ração a história comece outra vez.

rachel-de-queiroz
x
- +