Considera da sua obrigação esta vossa cronista comentar nesta e em outras páginas o imerecido infortúnio dos homens de cor que no mundo inteiro são oprimidos pela insensata, desumana e cruel civilização da raça branca. O de que os brancos careciam era que um grande povo de cor obtivesse a liderança do mundo e lhes infligisse a via-crúcis de opróbio e humilhação que eles proporcionam aos outros, há quase um milênio. E será ingenuidade dizer que não há povo de cor capaz de tal façanha. Os japoneses já andaram bem perto do triunfo, sobre a orgulhosa América; no seu curto período de domínio souberam muito bem fazer sentir aos brancos que é tão triste ser um amarelo em poder de brancos como ser um branco em poder de amarelos.

Mas não é propriamente para falar em amarelos que estamos conversando — e não vim aqui para defender japoneses. A crueldade de uns não justifica a perversidade bestial dos outros. Só quero fazer sentir aos brancos que a sua maldade não há de ser sempre tão impune quanto o tem sido até agora.

Os homens de cor de que interessa falar por ora, no Brasil, são os negros e seus mestiços. Dos índios, já deram cabo deles. Os poucos que há são praticamente curiosidade de museu. E, como foi dito acima, a pena, ou antes a velha Underwood portátil desta vossa criada, estão e estarão sempre à disposição de todo homem negro ou mestiço que sofra qualquer restrição à sua liberdade ou aos seus direitos, por motivo de preconceito racial. Sei que isso não vale quase nada, mas é o que posso fazer; mas, afinal de contas, como pouco de cada um, é que se compõe e muito de todos.

Acontece que toda vez que assina um artigo denunciando criminosas discriminações raciais cometidas no Brasil, recebe esta cronista um montão de cartas, telegramas e telefonemas alusivos ao assunto. Algumas dessas manifestações são de pessoas de cor, comovente e desproporcionalmente grata por ninharia tão somenos — simples cumprimento de um dever de consciência. Outras vêm assinadas por amigos e colegas, empenhados no mesmo combate. E outras — (não a maioria, mas um bom número) são desaforos, descomposturas, insultos, e até ameaças, partidas dos “racistas” nacionais.

Envergonha-me dizê-lo, mas são mulheres que assinam noventa por cento das missivas dessa última categoria; as mais venenosas, as mais odientas, as mais retrógadas, as mais sem caridade, são mulheres. Donas de casa revoltadas porque as empregadas de hoje em dia não se sujeitam mais à velha escravidão de dezoito horas de trabalho ininterrupto na cozinha ou na copa, e preferem a fábrica, o ateliê ou mesmo o estúdio de rádio. (O ódio que elas têm às “negras cantoras”! Ou são netas de senhor de engenho caídas da prosápia antiga, que ora se vêem obrigadas à luta pela dura vida, ombreando com as “negras” no trabalho e nos transportes coletivos — e em geral superadas por elas. Ou brancaranas azedas como dizia o poeta, sem cor e sem encantos, despeitadas ante o esplendor de sex-appeal das mulatas cor-da-lua-vem-nascendo-cor-de-prata. Seja por razões econômicas, sociais ou sentimentais, o fato é que elas perdem completamente o controle e mostram um furor nu e por isso mesmo singularmente repulsivo.

Detalhe — engraçado: quase todas, nos seus destampatórios, se declaram “católicas”... O que seria ótimo é que explicassem também como conseguem conciliar os sentimentos de igualdade, fraternidade e caridade, base e essência do cristianismo, com essa impudente insolência de negreiras, essa fria crueldade de linchadoras. Sim, linchadoras, são todas umas linchadoras morais, que não chegam às vias de fato por medo das consequências. Tivessem impunidade, sabe Deus o que fariam.

Em geral gostam de me perguntar: “Será a senhora uma negra? Pois só tal motivo justificaria o seu interesse por essa maldita raça”. A frase é textual; assinava-a alguém que dizia “uma dama”, mas de dama só tinha provavelmente a saia.

Pois o gostinho de responder a essa pergunta jamais vos darei, senhoras capitãs-de-mato. Jamais hão de saber se sou negra ou se não o sou. Porque se eu vos disser que sou negra, direis logo, “Naturalmente”! E se eu declarar que não o sou, direis também: “Ela defende os negros, mas negra não quer ser”. Que paire pois sobre esse assunto o maior mistério. Me imaginem preta, mulata, curiboca, branca ou amarela — isso não interessa. Não ligo, minhas senhoras. Por mais que me injuriem, não me tiram da minha serenidade. Porque anteponho à vossa ira uma realidade que é como uma pedra: não tenho, de modo absoluto, o mínimo preconceito de cor....

Se pensam que me insultam dizendo que sou negra, estão muito mal enganadas. E se cuidam que me chamam aos brios tratando-me de branca renegada, também se enganam. Só me dão pena; e não apenas a mim, que nada sou, mas a toda pessoa de inteligência e sentimento de justiça. O preconceito racial é um dos mais estúpidos e estreitos preconceitos humanos. Um homem que alimenta preconceitos raciais tem praticamente a idade mental de um chimpanzé. Por que é justamente próprio de irracionais rosnar e mostrar os dentes a outro animal só porque tem o pelo ou o cheiro diferentes dos seus.

Tudo que dizemos dos negros podem eles igualmente dizer de nós. Se os achamos feios —  pensais que poderá parecer bela a um habitante do Sudão uma inglesa esgalgada e sardenta, sem formas no corpo, sem luz nem cor nos olhos desbotados, andar de homem e voz anasalada? O negro tem o seu padrão de beleza como nós temos o nosso, e não sei por que será o nosso mais respeitável. E se não gostamos do cheiro dele, pensais que ele gosta do nosso cheiro? Há um ditado de escravo segundo o qual “todo o branco cheira a azedo”. No mais, nada temos que os negros não tenham. Corpo, sangue, esqueleto, coração, estômago, cérebro. E se achais que tendes uma alma imortal tereis que conceder ao negro outra alma imortal do tamanho da vossa.

Brancas orgulhosas — e de um orgulho vazio e desarrazoado — vós vos benzeis com a mão e com a boca rogais pragas. Pensais que sois católicas — mas estais é tomando o caminho mais certo do inferno. Vós é que sois os sepulcros caídos de que fala a Escritura: cal branca por fora, sinistra escuridão por dentro. E bem aprendidas, bem trajadas, bem comidas, bem pintadas, pensais que sois grandes coisas — mas se chegar uma hora de ajuste de contas, vereis que vão sereis boas nem para lavar os pés rachados da negra vossa lavadeira, que nunca soube ler e adorava um simples santo de pau, na humildade do seu ingênuo coração.

rachel-de-queiroz
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